Em todo o mundo, estados edificados em bases étnicas e religiosas são um retrocesso civilizatório
Por Luiz Carlos Azedo
Não acredito que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tenha cometido uma simples gafe ao responsabilizar os “brancos de olhos azuis” pela crise mundial, deixando perplexos o primeiro-ministro britânico Gordon Brown e todos os diplomatas presentes. A frase correu o mundo e teve diferentes interpretações. Uma delas de que seria mais uma tirada de Lula para o seu público interno, ou seja, para agradar à maioria dos brasileiros, miscigenada, formada por negros, mulatos e pardos que começa a sentir os efeitos da crise.
Prefiro imaginar que ele quis mandar um recado para os líderes do G-20, os países mais industrializados do mundo, de que vai bater duro no mundo financeiro e pedir uma reforma nos organismos econômicos mundiais, para enquadrar o grupo reduzido de magnatas gananciosos cuja irresponsabilidade provocou a atual crise financeira mundial. Embora não seja integrado apenas por gente de olhos azuis, por causa da tirada de Lula, a cara da banca internacional no nosso imaginário popular agora é essa.
Preconceitos
Lula me remeteu à “cruel” pedadoga do polêmico documentário De olhos azuis (Blue Eyes), a norte-americana Jane Elliot. Exibido pela GNT e premiado com o Emmy, o vídeo está no YouTube. Desde 1968, a educadora realiza o workshop intitulado The Eye of the Storm, no qual os participantes são submetidos aos preconceitos que sofrem negros, homossexuais, deficientes físicos, idosos e miseráveis. Blue Eyes relata um desses workshops, um exercício baseado na cor dos olhos. Os participantes de olhos azuis são marcados com um colar. Todos os estereótipos negativos que geralmente são aplicados às pessoas discriminadas são lançados a eles. Os que não possuem olhos azuis são designados como superiores e incentivados a discriminar fortemente os “olhinhos azuis”. Severamente criticados, xingados e tratados como inferiores, tudo o que há de ruim é atribuído somente à cor dos seus olhos: “Isso só podia vir de um olho azul mesmo”. O efeito corrosivo da discriminação sobre o humor, autoestima, autoconfiança e astral dos participantes é impressionante. Muitos choram. Pedem que Jane pare de tratá-los daquela maneira. Essas “vítimas” são pessoas que fazem parte do grupo dominante na vida real, acostumados a discriminar e nunca a serem discriminadas. A professora realiza o mesmo exercício na escola em que leciona. Muito criticada, responde com as seguintes interrogações: se um dia de discriminação causa tamanho efeito em uma pessoa, o que dizer de uma vida inteira cercada pelo preconceito? Como uma criança que é discriminada desde o momento do seu nascimento pode competir em igualdade com outra que é estimulada, amada e incentivada? Isso não é cruel? Não é totalmente desumano?
Racismo
Qualquer que seja a intenção de Lula, porém, sua frase foi infeliz. Trafega na fronteira do racismo, apesar do sinal trocado, porque tangencia o antissemitismo. É muito perigoso utilizar esse tipo de estereótipo racial —“gente branca de olhos azuis” — para “demonizar” os responsáveis pela crise econômica. Crises são ambientes que disseminam desesperanças, frustrações e ódios. Por exemplo, muitos judeus asquenazi da Europa Central e Oriental, vítimas de constantes pogroms, tinham olhos azuis como os de Hitler. Como se sabe, 6,1 milhões de judeus (homens e mulheres, velhos e crianças) foram vítimas do Holocausto, depois de responsabilizados pela crise de 1929.
Os Estados Unidos viraram uma página da História com a eleição do presidente Barack Obama, mas a Europa vive dramaticamente a emergência de conflitos étnicos que haviam sido congelados na Conferência de Yalta e explodiram depois da débâcle da Cortina de Ferro. Índia e Paquistão estão permanentemente à beira da guerra nuclear, xiitas e sunitas se matam no Iraque, sangrentos conflitos tribais inviabilizam algumas nações africanas. Em todo o mundo, Estados edificados em bases étnicas e religiosas são um retrocesso civilizatório.
O maniqueísmo racista não se sustenta perante a História. A elite branca, monarquista e escravocrata liderada por Pedro II, um Habsburgo de olhos azuis que nos governou por meio século, manteve a integridade territorial do Brasil. Sem isso, não seríamos o país mais miscigenado e etnicamente “traduzido” do mundo, no qual “oriundi”, “japinhas” e “brimos” se sentem plenamente brasileiros. Nas serras e vales do Espírito Santo e de Santa Catarina, o menino descendente de emigrantes da Pomerânia (uma nação extinta), preserva uma língua quase morta, sua secular agricultura orgânica e acaricia o solo que mais ama. Com olhos azuis de sonho, ele também constrói o novo mundo.
Publicado hoje na coluna Nas Entrelinhas do Correio Braziliense
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