sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

O ara pyau e a soberba oficial

Nas Entrelinhas: Luiz Carlos Azedo
Correio Braziliense - 27/12/2013

É “republicano” pra lá e pra cá, como se isso fosse sinônimo de democracia, o que é falso, historicamente. Trata-se, muitas vezes, de uma justificativa para decisões autoritárias


O calendário guarani é dividido em duas estações do ano: o ara pyau e o ara ymã, que significam “tempo novo” e “tempo velho”, respectivamente. O primeiro tem calor e fartura de alimentos, começa no equinócio da primavera e termina no equinócio do outono, quando o Sol se encontra sobre a linha do Equador. O melhor do “tempo novo” ocorre no solstício de verão, quando o Sol atinge o maior afastamento para o lado Sul, chegando ao Trópico de Capricórnio, ou seja, em janeiro. É quando os guaranis celebram a colheita do milho e realizam o ritual do batismo.

 Ara ymã é o período de frio e de escassez de alimentos. Começa no outono e termina no equinócio da primavera, quando o Sol se encontra, novamente, sobre a linha do Equador. Ou seja, no ara pyau, o Sol está no hemisfério Sul; no ara ymã , no Norte. O Cruzeiro do Sul rege o calendário guarani: no outono, ele fica deitado no sudeste; no inverno, fica em pé, com seu braço maior apontando para o Sul; na primavera, deitado no Sudoeste; e no verão, só aparece depois da meia-noite, de cabeça para baixo. Os indígenas relacionam os astros com períodos de chuva ou de seca, de calor ou de frio. Associam esses eventos às enchentes, às marés, ao plantio e às colheitas, à caça e à pesca. Há muita ciência em tudo isso, fruto de observações milenares. E também crendices e superstições, nas festas religiosas e nos rituais iluminados pelo céu estrelado.

Recorro à cultura ancestral dos guaranis para tratar da falta de sensibilidade do atual governo com a questão indígena. Embora o Brasil seja a nação mais “traduzida” do mundo — aqui descendentes de árabes e judeus, portugueses e espanhóis, italianos e gregos, franceses e ingleses, russos e alemães, todos preservam suas identidades étnicas —, a identidade étnica dos índios foi apagada nos centros urbanos, sobrevive apenas nas aldeias, embora o guarani até há 200 anos fosse a língua franca do Brasil. Essa falta de sensibilidade com a questão indígena é um sintoma do esgarçamento das relações entre o Estado e a sociedade, talvez o maior já ocorrido desde a redemocratização do país.

Foram sucessivos incidentes entre forças policiais e indígenas ao longo do ano — seja na Esplanada dos Ministérios, na Usina de Belo Monte, na Rio Mais-20, sem falar em conflitos localizados nas próprias reservas indígenas. A ameaça de suicídio coletivo dos guaranis-kaiowas de Mato Grosso do Sul, que reivindicam suas terras sagradas, gerou um movimento de protestos nas redes sociais que foi uma espécie de aviso do que estava por vir: as manifestações de junho passado. Essa insensibilidade para lidar com os nossos indígenas — que lutam por suas terras, sua cultura e sua identidade étnica — não foi muito diferente da revelada pelos prefeitos de São Paulo, Fernando Haddad (PT), e do Rio de Janeiro, Eduardo Paes (PMDB) – quando eclodiram as manifestações contra os aumentos de passagem dos transportes coletivos. Quanta arrogância, quanta soberba demonstram. A diferença é que já não se tratava de uma minoria étnica, mas de um grande contigente de jovens insatisfeitos com a qualidade de vida de nossas cidades e revoltados com o autoritarismo e a violência policial.

De onde é que vêm a arrogância e a soberba? Ora, do enorme poder que o Estado brasileiro exerce desde os tempos coloniais e de sua secular utilização como instrumento de acumulação de capital, de formação de patrimônio, de preservação de privilégios e de distribuição de benesses. De uns tempos para cá, tornou-se comum, no palavreado das autoridades — de quase todos os escalões —, o uso generalizado das expressões “Estado brasileiro” e “política de Estado” para justificar toda e qualquer decisão, como se o Estado estivesse acima da sociedade e não subordinado a ela numa ordem democrática. É “republicano” pra lá e pra cá, como se isso fosse sinônimo de democracia, o que é falso, historicamente. Trata-se, muitas vezes, de uma justificativa para decisões inopinadas, intervencionistas e voluntaristas do governo. Talvez os nossos índios, que vivem em sintonia com os astros nas suas comunidades primitivas, tenham sido os primeiros a enfrentar, com seus protestos, esse novo Leviatã. 

Hory ma"etyna pyau (feliz ano-novo). Volto em 6 de janeiro.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

E se Papai Noel fosse brasileiro?

Nas Entrelinhas: Luiz Carlos Azedo
Correio Braziliense - 25/12/2013

Nossa festa de Natal tem raízes bem mais antigas do que o nascimento de Jesus, mas sua forma atual data de aproximadamente 350 d.C., quando o papa Julio I resolveu transformar a Saturnália, que ocorria no solstíscio de inverno, numa festa cristã. Os romanos comemoravam intensamente o fim do ano agrário e religioso e a chegada do novo ano, com esperança de boas colheitas e dias melhores. Já então havia intensa troca de presentes.

Foram os norte-americanos — sempre eles – que deram ao Natal o caráter consumista de hoje, logo após a independência. Em Nova York, cidade fundada pelos holandeses, tiraram Papai Noel da sacristia para as portas das lojas. Inspirados na figura de São Nicolao, bispo de Mira, na Turquia, que gostava de distribuir presentes para comemorar o nascimento de Jesus — tradição que remonta aos Reis Magos Belchior, Baltazar e Gaspar —, os cartunistas Washington Irvin e Thomaz Nast deram ao Bom Velhinho o ar bonachão que se universalizou. Se Papai Noel fosse brasileiro, minha lista de presentes seria a seguinte:

Atendimento no SUS — Nosso Sistema Único de Saúde (SUS) precisa urgentemente de uma reforma. Ninguém aguenta mais a demora na marcação das consultas e no atendimento de urgência. No primeiro caso, acabaram com as filas marcando consultas para meses depois da entrega das senhas; no segundo, o sujeito somente é atendido se chegar na horizontal. Tem ainda a maracutaia dos planos de saúde, que enrolam as remoções dos hospitais públicos para não fazer cirurgias de emergência na rede privada. Falta também um plano de carreira que resgate o humanismo das profissões da área de saúde, principalmente dos médicos, sem termos que recorrer a médicos cubanos e de outras nacionalidades.

Educação de qualidade — A educação básica no Brasil foi universalizada, mas o ensino público deixa muito a desejar. Com 50 milhões de jovens, o Brasil vive o paradoxo de importar mão de obra para os setores mais dinâmicos da economia por falta de qualificação adequada dos nossos trabalhadores. Nos setores tradicionais da economia, sobra mão de obra. O desemprego é mascarado pela existência de 10 milhões jovens que nem estudam nem trabalham. Não é à toa que essa garotada nem-nem foi pra rua e pôs a boca no trombone: mais escolas e mais empregos de qualidade!

Transporte digno — Quem não quer um carro novo de presente de Natal? Todo mundo, é claro, mas isso não resolve o problema da mobilidade de nossas cidades, que já não suportam tantos automóveis. Eles ocupam 90% das vias e transportam de 10% a 15% da população, enquanto ônibus, metrôs e trens andam superlotados. Além disso, as passagens custam muito caro. Se houvesse transporte de massa digno, ninguém precisaria de automóvel para se deslocar de casa para a escola ou o trabalho. Mesmo os que têm veículos próprios.

Segurança pública — Cadê o Amarildo? Cadê o Antônio? Ambos sumiram, no Rio de Janeiro e em Brasília, respectivamente, em razão da violência policial. Segurança e respeito aos direitos humanos precisam andar juntas, inclusive nas prisões, verdadeiras masmorras medievais. O autoritarismo secular de nossa estrutura de poder está entranhado nas nossas polícias, que precisam mudar de paradigma, principalmente a militar, cujos métodos de atuação obedecem aos conceitos de guerra e não os da paz.

Proteção à infância — A parcela mais pobre da população brasileira, principalmente nas cidades, precisa de um programa de segurança familiar com foco nas crianças e adolescentes. De cada dez crianças em situação de risco, todas têm famílias desestruturadas, cujos integrantes, em sua maioria, são atendidos por diversos programas sociais — municipais, estaduais e federais —, inclusive o Bolsa Família, mas ninguém é responsável pelo conjunto da obra. As crianças vivem nas ruas, comem num lugar, pegam roupas em outro, dormem em abrigos ou debaixo de marquises, acabam zumbis do crack. Deveriam ser identificadas, cadastradas, frequentar escolas em horário integral e ter as respectivas famílias monitoradas.

Ética na política — Nem é preciso tecer muitos comentários sobre esse assunto. O brasileiro não confia nos partidos, nos políticos e no Congresso e tem bons motivos para isso. É preciso renovar os nossos costumes e as instituições políticas, para que o bem comum predomine em relação ao fisiologismo e ao patrimonialismo.

P.S.: a propósito, faço um pedido muito especial: um presente bacana e singelo para Maria Antônia, a filha caçula do ex-ministro da Casa Civil José Dirceu. Ela tem apenas 3 anos e sente muita falta do pai.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

O ano que não acabou em pizza

Nas Entrelinhas: Luiz Carlos Azedo
Correio Braziliense - 23/12/2013
Hoje, a presidente Dilma Rousseff fará seu pronunciamento de Natal, em cadeia de rádio e televisão, com previsões para 2014.  Dirá que o copo está quase cheio, como fazem os mais otimistas
 
Um balanço do governo Dilma leva à conclusão de que 2013 foi um ano quase perdido, mais ou menos como o anterior, com a diferença de que a popularidade da presidente da República diminuiu: está com 43% de aprovação, segundo a pesquisa CNI/Ibope de dezembro. Quase perdido porque Dilma, aos trancos e barrancos, apesar de os protestos ocorridos em junho e julho terem afetado sua popularidade, recuperou parte da base social perdida, lidera as pesquisas para as eleições de 2014, manteve a maioria no Congresso e conseguiu controlar a inflação. Não é pouco diante da inédita onda de protestos que varreu o país, porém, não entrará em 2014 voando em céu de brigadeiro. Senão, vejamos:

O Palácio do Planalto enfrenta muitas dificuldades com sua base política. A mais séria, com toda certeza, foi o descolamento do PSB, cujo presidente, o governador Eduardo Campos, resolveu se candidatar ao Palácio do Planalto e conquistou o apoio de Marina Silva, que não conseguiu registrar seu partido, o Rede Sustentabilidade. A presidente da República tirou o salto alto na relação com os aliados, mas ainda tem muitos problemas. O maior deles é com o PMDB, com quem mantém uma espécie de casamento de aparências. 

Petistas e peemedebistas encerram o ano com sérias disputas regionais, que podem pôr em risco a aliança nacional. Caciques do PMDB estão insatisfeitos no Paraná, no Rio de Janeiro, em Minas, na Bahia, na Paraíba, no Ceará e no Maranhão. Os desafetos da Bahia e Pernambuco não contam. Há muitas incertezas no horizonte eleitoral, a maior delas continua sendo o “Volta, Lula!”, uma insistente conspiração de empresários e petistas para que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva seja o candidato em seu lugar.

Dilma conseguiu evitar a aprovação da chamada “pauta bomba” de desonerações tributárias, aumentos salariais e derrubada de vetos. Aprovou alguns projetos na área social, como o polêmico Programa Mais Médicos, que teve boa aceitação popular, e a destinação de recursos dos royalties do pré-sal para a saúde e a educação. A política de recuperação do salário mínimo também foi mantida. Mas o Palácio do Planalto patinou no Código de Mineração, no Marco Civil da Internet e na unificação das alíquotas do ICMS para acabar com a guerra fiscal.

O desempenho do governo deixa a desejar nas áreas da saúde, segurança pública e educação, com índices de desaprovação de 72% , 70% e 58%, respectivamente. As três áreas puxam para baixo a aprovação do governo e podem criar problemas para Dilma na campanha da reeleição. São administradas por petistas da linha de frente do governo: os ministros Alexandre Padilha (Saúde), que será candidato a governador de São Paulo; Aloizio Mercadante (Educação), cotado para ocupar a chefia da Casa Civil, no lugar da ministra Gleisi Hoffman; e  José Eduardo Cardozo (Justiça), que será o responsável pelo megaesquema de segurança da Copa do Mundo. 

Os maiores problemas do governo, porém, estão na economia. O programa de investimentos em infraestrutura, que alavancaria o crescimento, atrasou. Somente não foi um fracasso por causa dos leilões do megapoço de petróleo de Libra (camada pré-sal), dos aeroportos do Galeão e de Confins e de algumas estradas federais. A estratégia de redução forçada dos juros para retomar o crescimento, grande aposta de Dilma Rousseff, resultou no seu maior fracasso: os juros já estão de volta aos dois dígitos. 

Analistas atribuem o mau desempenho da economia ao voluntarismo de Dilma e ao seu exagerado intervencionismo nas atividades econômicas. A política fiscal sofre bombardeio externo e interno, principalmente porque o governo maquiou números e flexibilizou a política de responsabilidade fiscal. A previsão de crescimento para este ano está em torno de 2% e a inflação deve fechar 2013 pouco abaixo do teto da meta (6,5%). Há previsões catastróficas, mas a “tempestade perfeita”, porém, não deve ocorrer: o Federal Reserve (FED, banco central dos Estados Unidos) pretende manter taxas de juros baixas até 2015, o que supostamente seria o catalizador da crise.

Hoje, a presidente Dilma Rousseff fará seu pronunciamento de Natal, em cadeia de rádio e televisão, com previsões para 2014.  Dirá que o copo está quase cheio, ou seja, que o pior já passou, o que é a sua obrigação. De todos os fatos deste ano, o mais constrangedor foi a condenação dos réus do mensalão, a Ação Penal 470, pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Entre eles, estão os líderes petistas José Dirceu, José Genoino, Delúbio Soares e João Paulo Cunha, seus companheiros de partido, dos quais mantém distância regulamentar.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Uma cabeça na bandeja

Nas Entrelinhas: Luiz Carlos Azedo
Correio Braziliense - 20/12/2013
 
 O título é meio mórbido, mas não tem nada a ver com os três presos decapitados na rebelião do presídio de Pedrinhas, no Maranhão, um retrato das condições desumanas das nossas cadeias, que lembram as masmorras da escravidão romana. Vale, porém, o registro. Trata-se, no caso, de uma parábola — figura de estilo — que descreve com exatidão a situação do presidente do PMDB, Michel Temer, na chapa da reeleição da presidente Dilma Rousseff. Sua cabeça está sendo oferecida pelos caciques da legenda para quem quiser resolver os problemas regionais da aliança do PMDB com o PT.

Notável constitucionalista e hábil articulador político, Temer conseguiu a proeza de unir o PMDB, uma confederação de caciques políticos estaduais, para apoiar o governo Lula, o que lhe garantiu a vaga de vice-presidente da República. Ficaram de fora apenas alguns caciques recalcitrantes, como o ex-governador de Pernambuco Jarbas Vasconcelos. O vice de Dilma manteve o PMDB no governo administrando conflitos regionais com incrível competência, como o da Bahia, onde Geddel Vieira Lima, ex-ministro da Integração Nacional do governo Lula, passou sete anos se digladiando com o governador Jaques Wagner (PT); mesmo assim, no governo Dilma, manteve o cargo de vice-presidente da Caixa Econômica Federal (CEF). De uns tempos pra cá, na medida em que a eleição se aproxima, porém, Temer começa a perder o controle da situação do PMDB.

A primeira crise no sistema de alianças construído por Temer foi na eleição do líder da bancada do PMDB na Câmara, Eduardo Cunha (RJ), que o Palácio do Planalto tentou detonar. Michel vacilou diante das pressões, mas o parlamentar resistiu e registrou a ocorrência. Por muito pouco, Henrique Eduardo Alves (RN), o presidente da Casa, também não fez o mesmo para agradar à presidente da República. Depois, a crise se instalou no Rio de Janeiro, onde o governador Sérgio Cabral (PMDB), que tinha o maior cacife eleitoral da legenda, foi abandonado por Dilma e, agora, e vem sendo enrolado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O senador Lindbergh Farias será mesmo o candidato do PT contra Luiz Fernando Pezão (PMDB, o vice de Cabral. O PT empurra com a barriga a saída do governo, mas está escrito nas estrelas que Cabral somente se manterá na aliança com os petistas se jogar a tolha quanto à própria sucessão.

Nova crise eclodiu no Ceará, onde o senador Eunício de Oliveira(PMDB) é candidato a governador e reclama o apoio do PT e dos irmãos Gomes. Ocorre que nem Cid, o governador, nem o irmão Ciro, cotado para o Ministério da Saúde, desejam abrir mão de uma candidatura de seu próprio esquema político, que migrou do PSB para o Pros. Bom de briga, Eunício cobra solidariedade dos pares e já mandou recado de que não aceita palanque duplo no Ceará. Situação semelhante começa a ocorrer também no Maranhão e na Paraíba, onde o PT rói a corda da aliança com os senadores José Sarney (PMDB-AP) e Vital do Rego (PMDB-PB), respectivamente. Michel Temer acumula mais micos na mão. As críticas de seus pares são de que se acomodou no cargo e já não defende os interesses do partido nas bolas divididas. Decidiu exercer o papel de representante de Dilma Rousseff nos conflitos, em vez de defender com unhas e dentes os interesses do PMDB junto ao governo. É aí que mora o perigo.

A situação tornou-se tão crítica que os caciques ameaçam entregar a cabeça de Temer na aliança com o PT e cuidar da própria vida. Se preciso for, estão dispostos a engrossar o “Volta, Lula!”, com o filho do falecido vice-presidente José Alencar, Josué, que se filiou ao PMDB de Minas, na vice do ex-presidente da República, no lugar de Temer. Acontece que a fórmula também agrada a Dilma, que assim mudaria a cara de sua chapa de candidata à reeleição, fortalecendo-se em Minas. Ou seja, os caciques regionais do PMDB interessados em manter ou conquistar governos locais estão dispostos a oferecer a cabeça de Temer numa bandeja — seja para Dilma seja para Lula.

Grande irmão
O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, é o nome escolhido pela presidente Dilma Rousseff para comandar o megaesquema de segurança que será montado durante a Copa do Mundo. Policiais das sedes e demais forças de segurança já estão sendo treinados por agentes norte-americanos na prevenção de atos terroristas. Cardozo disporá de amplos poderes legais, administrativos, recursos e homens para investigar qualquer indivíduo suspeito de ter relações com organizações terroristas durante os jogos.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Breve história do caixa dois

Nas Entrelinhas - Luiz Carlos Azedo
Correio Braziliense - 18/12/2013 

Como estrila o presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), segundo a Constituição (artigo 22, I), o Congresso tem "competência privativa" — indelegável, portanto — para legislar sobre direito eleitoral.

 
Desde o restabelecimento das eleições diretas para a Presidência da República, o caixa dois de campanha eleitoral é um fantasma que assombra a política nacional, pois sempre foi uma prática dos nossos políticos, cuja honestidade era medida pelo fato ou não de destinarem o dinheiro exclusivamente para a campanha e se aproveitarem dele para aumentar o patrimônio familiar. A origem do dinheiro muitas vezes era o superfaturamento de contratos ou o desvio de verbas públicas, num conluio entre agentes públicos e empresários. Não por acaso, nossos empreiteiros se tornaram os maiores financiadores de campanha do país.
 
Era a tradição, mas não havia vala comum entre políticos honestos e desonestos. Ulysses Guimarães, por exemplo, o líder da oposição, era um homem honesto. Dependia dos amigos para ter algumas mordomias, como viajar de helicóptero. Morreu num voo para Angra dos Reis, em companhia do amigo Severo Gomes, o político e empresário que mais o ajudava nas campanhas. Já o governador paulista Ademar de Barros notabilizou-se por meter a mão no dinheiro público com a maior cara de pau, a ponto de adotar o slogan "Rouba, mas faz!". Durante o regime militar, militantes da Var-Palmares, organização à qual pertenceu a presidente Dilma Rousseff, assaltaram a casa da amante de Ademar, em 18 de julho de 1969, e roubaram US$ 2,5 milhões para financiar a luta armada.
 
Com a volta das eleições diretas, as campanhas presidenciais se tornaram um negócio milionário. A campanha de Fernando Collor de Mello, em 1989 — no segundo turno, principalmente —, arrecadou milhões de empresários assustados com a possibilidade de o ex-metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ser eleito. Foi nesse ambiente que o pequeno empresário alagoano Paulo Cesar Farias emergiu da campanha como o todo-poderoso dos negócios envolvendo o governo. Até que um irmão enciumado, Pedro Collor de Mello, pôs a boca no trombone. O resultado foi a CPI mista do PC Farias e a campanha de impeachment de Collor de Mello.
 
Assim, partiu do Congresso, e não de outra instituição, a iniciativa de pôr ordem nas campanhas eleitorais. O relatório da CPI mista dizia: "Abandonemos a hipocrisia, não contudo para permitir o domínio indiscriminado do poder econômico na formação da vontade política. Devemos impor parâmetros realistas, porém controle severo, para os que infringirem a lei. Assim estaremos não acabando a corrupção eleitoral, mas contribuindo para que a sociedade e a Justiça possam combatê-la". A inspiração veio do ex-presidente socialista francês François Mitterrand, autor do projeto de lei que regulamentou, na França, em 1988, o financiamento dos partidos e das campanhas eleitorais.
 
É que a Lei Eleitoral herdada do regime militar proibia a doação de empresas às campanhas eleitorais. O Congresso, porém, mudou as regras e tornou obrigatória a "publicização" das doações. A Lei Eleitoral de 1997 estabeleceu também limites para as doações de pessoas físicas (10% da renda no ano anterior) e de pessoa jurídica (2% do faturamento no ano anterior). Não se chegou a uma situação perfeita, mas a legislação atual tornou mais transparentes as relações entre os candidatos e os principais doadores: bancos, empreiteiras, siderúrgicas, empresas do setor elétrico, etc.
 
A celeuma sobre a Ação Penal 470, o chamado processo do mensalão, levou à pauta do Supremo Tribunal Federal (STF) a ação direta de inconstitucionalidade (Adin) apresentada pela OAB que questiona as doações feitas por pessoas jurídicas às campanhas eleitorais. A tese vai ao encontro dos advogados de defesa dos réus, que negam a existência de desvios de recursos públicos no escândalo e atribuem a origem do dinheiro a empréstimos privados. Ou seja, o crime seria a existência de caixa dois, uma prática que seria ainda corriqueira. A tese foi rejeitada pela maioria dos ministros do STF, mas permanece no ar.
 
Eis que o presidente do STF, Joaquim Barbosa, decide pôr o assunto em pauta e a Corte ameaça jogar a criança fora com a água da bacia. O julgamento já está 4 a 0 a favor de acabar com doações de pessoas jurídicas, quiçá até de pessoas físicas, com adoção do financiamento público exclusivo, velha bandeira do PT. O problema, porém, não é apenas de mérito. Como estrila o presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), segundo a Constituição (artigo 22, I), o Congresso tem "competência privativa" — indelegável, portanto — para legislar sobre direito eleitoral. Essa competência obedece ao princípio da anualidade, pelo qual a lei que alterar a regra do jogo da eleição deve estar em vigor um ano antes do pleito. Isso se aplicaria também ao Judiciário quando "invade" a competência legislativa do Congresso? Segundo o ex-presidente do STF Sepúlveda Pertence, "o princípio da anualidade deve proteger o sistema eleitoral — os partidos, os candidatos e principalmente o cidadão, eleitor — de "viradas jurisprudenciais", que alteram a regra do jogo da eleição a menos de um ano do pleito."

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Adivinhe quem vem para a ceia de Natal?

Nas Entrelinhas- Luiz Carlos Azedo
Correio Braziliense - 16/12/2013

Nossos políticos até hoje não se deram conta de que o modelo de financiamento da política está esgotado. Foi preciso o Supremo meter sua colher nessa panela para caírem na real.

Como já aconteceu algumas vezes, os nossos políticos estão em pânico em razão de uma iminente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que julga ação impetrada pela OAB para que o financiamento de campanhas por empresas seja considerado ilegal. A medida praticamente desestrutura todo o atual sistema de doações, ao restringi-lo às pessoas físicas, o que significa não pôr quase nada no lugar para a maioria dos partidos. Como financiamento de campanha por empresas é considerado quase um sinônimo de superfaturamento de contratos de execução de obras, prestação de serviços e fornecimentos de insumos à administração pública, a decisão do Supremo tem certa simpatia de formadores de opinião e pode cair no gosto popular.


O julgamento foi suspenso quando estava 4 a 0, pelo ministro Teori Zavaski, que pediu vistas do processo. Se for retomado nesta semana, provavelmente será concluído com uma maioria a favor da proibição. A não ser que haja uma forte reação do Congresso, que mais uma vez teve suas atribuições “judicializadas” porque se omitiu da questão. Assim como o voto proporcional unipessoal, o atual sistema de votação, que é considerado “imexível” pela maioria dos deputados, o financiamento de campanha também é um tema tabu no Congresso Nacional. Mexer no atual sistema, somente se for de forma cosmética, como aconteceu até agora. Com licença de vegetarianos e outros defensores dos direitos dos animais, no Congresso, fazê-lo é mais ou menos a mesma coisa do que convidar o peru para a ceia de Natal.

Nossos políticos até hoje não se deram conta de que o modelo de financiamento da política está esgotado. Foi preciso o Supremo meter sua colher nessa panela para caírem na real. O fato é que o atual modelo de financiamento é a raiz de um fenômeno que começa a comprometer nosso sistema representativo, com a avassaladora vantagem adquirida pelo poder econômico em relação ao voto de opinião. Hoje, não existe campanha com chance de sucesso se não tiver “estrutura”, o que, no jargão dos políticos, significa dinheiro para contratar marqueteiros e uma militância quase toda ela profissionalizada, com honrosas exceções. Dirigentes sindicais, líderes comunitários, blogueiros, o que não falta é gente ansiosa pelo começo da campanha  para ganhar uns trocados a mais. No caso de marqueteiros e outros profissionais especializados, o custo disso está na casa dos milhões.

De onde vem esse dinheiro? Ora, vem das empresas que prestam serviços ao governo ou têm algum outro interesse específico no Congresso Nacional. Como já comentei por aqui, numa ordem capitalista democrática, há dois tipos de políticos: os que defendem o bem comum e os que veem a política como negócio. Os primeiros dependem, teoricamente, do voto da opinião pública; os segundos, do poder econômico. Nos Estados Unidos, o lobby é legalizado para que o sistema funcione com transparência e o eleitor possa escolher com mais segurança que tipo de político o representa. No Brasil, todo político só defende o bem comum, nenhum assume a política como negócio, mas hoje o que mais têm no Congresso são os segundos. O mais curioso é o envolvimento das grandes empresas do país no financiamento da campanha, muitas vezes por meio de “caixa dois”. Se for feito um cruzamento de dados das “pessoas jurídicas” envolvidas nos escândalos, veremos que há muitas coincidências. Algumas grandes empreiteiras do país são arroz de festa nos casos de superfaturamento. Ou seja, o sistema está “bichado”.

Como financiar campanhas caríssimas? A saída pode ser um sistema híbrido, no qual cada um poderia escolher entre o financiamento público e as doações privadas, como nos lembrou ontem a nossa colega jornalista Tereza Cruvinel. Essa é a proposta apresentada pelo deputado Cândido Vaccarezza (PT-SP), coordenador da comissão especial da reforma política da Câmara. A ideia, porém, nunca foi levada a sério pelos partidos, a começar pelo PT, que renega a proposta e está satisfeito com o rumo da votação no Supremo. Por que esse contentamento? Ora, porque numa situação de terra arrasada, o PT leva a vantagem de ser o partido com mais militantes e, simultaneamente, controlar as relações do governo com os maiores empresários do país.

Para encerrar o assunto, um breve comentário sobre o papel do iluminismo nas decisões do Supremo, que foi enaltecido pelo ministro Luiz Roberto Barroso. Não haveria o Estado moderno, democrático, sem o racionalismo e os iluministas, que apartaram as questões de Estado das religiões. Montesquieu, o pai do sistema de “trias política”, dizia que quando o Executivo e o Legislativo estão juntos, não pode haver liberdade. Por isso, caberia ao Judiciário interpretar as leis, e não aos demais poderes. A Constituição dos Estados Unidos e a Revolução Francesa universalizaram esse princípio do liberalismo, que agora está sendo exercido com pleno vigor pelo Supremo Tribunal Federal.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

A travessia do deserto

Nas Entrelinhas- Luiz Carlos Azedo
Correio Braziliense - 13/12/2013

Aécio está convicto de que Dilma será mesmo candidata à reeleição e pode ser derrotada, por causa do seu desempenho à frente do governo, que considera catastrófico           
 
 
Num encontro com 30 jornalistas, quarta-feira à noite, no restaurante Piantella — velho reduto dos políticos em Brasília —, o presidente do PSDB, senador Aécio Neves (MG), esbanjava confiança na sua candidatura a presidente da República. Como se sabe, esse é o primeiro requisito para quem deseja disputar o Palácio do Planalto e convencer os eleitores de que está preparado para isso. Bem-humorado, nada parecia abalar essa convicção. Considera o ex-governador José Serra um aliado precioso, que vai se incorporar à campanha; conta com a lealdade do governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), candidato à reeleição, cujo apoio será decisivo. 

Aécio está convicto de que Dilma será candidata à reeleição e pode ser derrotada, por causa do seu desempenho à frente do governo, que considera “catastrófico”. O senador mineiro não acredita na candidatura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, embora saiba que petistas e aliados conspiram para que volte ao poder em 2014. Confiante de que chegará ao segundo turno, trabalha para que a aliança com o governador de Pernambuco, Eduardo Campos (PSB), seu concorrente na disputa, seja consolidada até lá. Ambos se encontraram no domingo passado, num restaurante em Ipanema, no Rio de Janeiro. “Nós estamos conversando sobre a situação nos estados com frequência.”

A maior preocupação de Aécio é com a situação da economia. O tucano deseja conquistar a confiança dos empresários descontentes com o intervencionismo do governo nas atividades econômicas. Para isso, sinaliza que o ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga e o governador mineiro Antonio Anastasia serão os comandantes de sua equipe econômica, caso chegue ao poder. Ambos o acompanharam ontem, em São Paulo, no encontro com 60 peso-pesados da economia e com o ex-presidente Fernando Henrique Cardozo. Ao contrário de José Serra, que manteve distância regulamentar de FHC nas duas vezes em que foi candidato, Aécio defende o ex-presidente tucano e suas realizações, como a estabilização da economia e o ajuste fiscal. “O que deu certo no governo do PT foi copiado do PSDB; toda vez que eles quiseram fazer diferente, deu errado”, dispara. Refere-se, principalmente, à política de combate à inflação e às privatizações.

O tema da ética será uma questão fundamental na campanha, avalia Aécio, que diz não temer os ataques do PT em relação à gestão de FHC. Prepara antídotos para quase tudo, como fez em relação ao Bolsa Família, ao apresentar projeto de lei que transforma o programa de transferência de renda que marcou o governo Lula em política de Estado. O mesmo pretende fazer em relação aos escândalos que rondam alguns tucanos, como o chamado “mensalão mineiro”, atribuído ao governo Eduardo Azeredo, e ao cartel do Metrô, que tira o sono de Alckmin. “Vou falar muito de ética na campanha”, promete. Ao contrário do PT, que defende os condenados na Ação Penal 470, Aécio lava as mãos em relação aos supostamente envolvidos: “Se tiver alguém do PSDB que recebeu propina e se isso ficar provado, tem que ir para a cadeia também.”

A vantagem da presidente Dilma Rousseff nas pesquisas é conjuntural, na avaliação de Aécio. O tucano argumenta que ela tem uma exposição na mídia muito maior em relação aos demais candidatos. “Nós precisamos discutir isso, mas acho que a partir de março essa situação deve mudar”. A legislação eleitoral garante espaços iguais nos veículos de comunicação para os candidatos, mas somente após junho. “Eu e Eduardo sabemos que teremos de atravessar o Rubicão, até chegar à comunicação de massa, o que só deve acontecer entre março e abril. Até lá, vai ser uma travessia no deserto. Não tenho ilusão de mudar isso antes de terminar a Copa”, avalia.

Miscelânea

O nome do vice/ O ex-presidente Fernando Henrique Cardozo defende uma chapa “puro-sangue” na disputa presidencial, com a indicação de um vice paulista. O senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB) é o nome mais cotado. Nesse caso, ex-governador José Serra (PSDB) seria candidato a deputado federal ou a senador por São Paulo. 

Espaço vazio/ A disputa eleitoral no Rio de Janeiro, que ainda está em discussão no campo da oposição, abre espaço para uma coalizão PSDB-PSB-PPS-PV-Solidariedade, encabeçada pelo treinador de vôlei Bernardinho, tendo o deputado federal Romário como candidato ao Senado. Seria uma antecipação da possível aliança do segundo turno

Tirou por menos/ O apoio do PPS a Eduardo Campos (PSB) foi minimizado por Aécio Neves. “O Roberto Freire disse que é importante consolidar a candidatura de Campos, para estarmos todos juntos no segundo turno.”

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Mandela e a "fulanização" da política

Nas Entrelinhas: Luiz Carlos Azedo
Correio Braziliense - 11/12/2013

 Obama destacou muitas qualidades pessoais de Madiba, como o povo chamava Mandela, mas uma delas é especial na política: a capacidade de perdoar os desafetos

Foi emocionante o funeral de Nelson Mandela, ontem, em Joanesburgo, na África do Sul. Ele, como disse a presidente Dilma Rousseff, foi talvez a maior personalidade do século 20, na qual pontificaram grandes estadistas e líderes, nenhum dos quais, porém, com trajetória política tão dramática e soma de atributos de natureza pessoal com a universalidade do sul-africano. “Nelson Mandela conduziu com paixão e inteligência um dos maiores processos de emancipação do ser humano da história contemporânea: o fim do apartheid na África do Sul. O combate de Mandela e do povo sul-africano se transformou em um paradigma para todos os povos que lutam pela justiça, pela liberdade e pela igualdade”, disse Dilma.
Entre os 90 chefes de estado presentes à cerimônia, ocuparam lugar de destaque os presidentes de Cuba, Raúl Castro; da Índia, Pranab Mukherjee; da Namíbia, Hifikepunye Pohamba; e o vice-presidente da China, Li Yuanchao. Mas a grande estrela da festa foi o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, que fez um pronunciamento antológico e, desde a entrada no Estádio Soccer City, com capacidade para 80 mil pessoas, foi sempre o mais aplaudido entre os presentes, enquanto o atual presidente sul-africano, Jacob Zuma, foi vaiado.
Obama destacou muitas qualidades pessoais de Madiba, como o povo chamava Mandela, mas uma delas é especial na política: a capacidade de perdoar os desafetos, depois de vencidos, como fez não só com o primeiro-ministro Frederik Willem de Klerk, com quem dividiu o prêmio Nobel da Paz, depois de negociar uma transição pacífica, mas, também, com seu carcereiro, de quem se tornou amigo. A lição de Mandela é de que não se deve “fulanizar” a política, mas lutar por ideias e agir contra as instituições e práticas injustas, como era o apartheid. Talvez tenha sido essa mesma inspiração a que levou Obama a cumprimentar de forma simpática e até efusiva o presidente de Cuba, Raúl Castro, sem embargo das críticas que fez aos regimes autoritários e seus tiranos. Um sinal de que alguma coisa nova pode surgir daí e da política externa norte-americana, cujo eixo é a luta antiterrorista herdada de George Bush, e que cada vez mais dá sinais de que se esgotou.
Todo esse arrazoado, porém, tem por objetivo ressaltar o gesto da presidente Dilma Rousseff ao convidar os ex-presidentes da República José Sarney (PMDB), Fernando Collor de Mello (PTB), Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e Luiz Inácio Lula da Silva para integrar a delegação oficial brasileira que foi ao enterro, à moda norte-americana, cuja delegação também era integrada pelos ex-presidentes Jimmy Carter, George Bush e Bill Clinton. Foi um ato — o segundo que faz em seu mandato — de que não pretende “fulanizar” a política de governo. Isso é importante diante da aproximação de uma campanha eleitoral que dá sinais de que será dura e suja. Ulysses Guimarães (PMDB), o patrono de nossa Constituição Cidadã, com outras palavras, dizia que esse tipo de postura é um equívoco. A situação política muda e, muitas vezes, o adversário de ontem é o grande aliado de hoje.
A própria delegação brasileira é um exemplo disso. Talvez ninguém tenha esculachado mais o ex-presidente José Sarney do que Collor de Mello, que acabou apeado do poder por uma campanha de impeachment liderada por seu desafeto na campanha de 1989, o ex-presidente Luiz Inácio da Silva. Este, antes, durante e depois de seu governo, nunca perdeu uma oportunidade de espicaçar seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso, que também não deu vida mole para José Sarney quanto ele ocupava a Presidência, a ponto de dizer que a crise viajava com ele. Agora, os quatro dividiram a mesma cabine do avião presidencial, como notáveis representantes do Brasil no funeral de Mandela.
A “fulanização” da política no Brasil é uma tradição pré-republicana. Foi característica de D. Pedro I logo após a proclamação da Independência, principalmente durante a Constituinte de 1823, que acabou dissolvida. Com seu amigo Francisco Gomes da Silva, o Chalaça, infernizava a vida dos desafetos com publicações anônimas e caluniosas. Foi também uma característica das lutas políticas da República Velha. Nosso regime presidencialista, de certa forma, até hoje estimula que assim o seja. Mas é uma forma atrasada e retrógrada de fazer política. Por isso, o mesmo povo despreza os políticos que usam de baixaria nas disputas e depois se confraternizam como amigos de infância. Consideram esse gesto de civilidade — que em si não é o problema —, falta de vergonha na cara. Como isso é inevitável na política, quando mudam conjunturas e prioridades, o melhor, mesmo, é não “fulanizar”.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Pra frente Brasil, salve a seleção

Nas Entrelinhas: Luiz Carlos Azedo
Correio Braziliense - 09/12/2013
Há muitas controvérsias sobre a relação entre a política e o futebol, haja vista que uma coisa não está necessariamente ligada a outra, apesar de os cartolas e os governantes fazerem o maior esforço possível para isso
A Seleção Brasileira de futebol, como diria Nelson Rodrigues, é a pátria de chuteiras. Gera uma corrente de esperança e paixão entre os brasileiros praticamente inquebrantável, mesmo para os mais desencantados e revoltados com a situação do país, como nos relata Cid Queiroz Benjamin em sua recém lançada e excelente biografia, intitulada Gracias a la vida (Editora José Olympio). Mesmo nas prisões e no exílio, militantes radicais da oposição decididos a torcer pela derrota do Brasil acabaram comemorando, como os demais brasileiros, a espetacular vitória da nossa Seleção canarinho nos gramados do México, na Copa do Mundo de 1970.
 
Como se sabe, a gloriosa campanha do Brasil no México despertou muito patriotismo. Marcou o momento de maior apoio popular ao regime militar, então presidido pelo general Emílio Garrastazu Médici, que era um torcedor gremista fervoroso e chegou a frequentar o estádio do Maracanã de radinho de pilha ao ouvido, sob aplausos da torcida. Era a época do milagre econômico e a oposição, representada pelo MDB, sofreria nas urnas a sua maior derrota para a Arena. Nunca, até então, o futebol e o marketing político estiveram tão juntos.
 
Eis por que, como não poderia deixar de ser, a presidente Dilma Rousseff aposta suas fichas na vitória do Brasil na Copa de 2014, uma empreitada que herdou do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e que tem uma certa dose de risco político. É que há muita contestação à realização do evento no Brasil, mais por causa do valor proibitivo dos ingressos para os jogos e das passagens aéreas para acompanhar o escrete nacional, pelas suspeitas de superfaturamento dos custos das obras de alguns estádios e não realização da maior parte dos projetos de mobilidade urbana, do que em razão de uma atitude antipatriótica dos que se opõem à realização dos jogos nos termos previstos pela Fifa.
 
Há muitas controvérsias sobre essa relação entre a política e o futebol, haja vista que uma coisa não está necessariamente ligada a outra, apesar de os cartolas e os governantes fazerem o maior esforço possível para isso. A vitória de 1958, na Suécia, por exemplo, fez parte do ambiente de franco otimismo que pautou a vida nacional durante os anos do governo de Juscelino Kubitschek. Já a vitória de 1962, no Chile, não impediu o naufrágio econômico do governo Jango e o golpe militar que o apeou do poder.
 
Do ponto de vista da Copa de 2014, portanto, antes de mais nada, é necessário dizer que os principais candidatos de oposição, o senador Aécio Neves (PSDB), ex-governador de Minas, e o governador de Pernambuco, Eduardo Campos (PSB), são sócios da empreitada, pois ambos estão comprometidos, respectivamente, com a realização dos jogos em Belo Horizonte (MG) e no Recife (PE) e com o sucesso do Brasil, consequentemente. Isso, porém, não quer dizer que sejam solidários com o governo Dilma no caso de um eventual fracasso brasileiro na realização dos jogos. Eis a grande questão política posta pelo desempenho da Seleção para a reeleição da atual presidente da República.
 
Já nos assombra o fantasma da derrota da Seleção Brasileira de 1950, por 2 x 1, para a seleção do Uruguai, na final da Copa do Mundo, na qual o Maracanã chorou com aquele inacreditável gol de Ghiggia 11 minutos antes de o jogo acabar. É o responsável por aquele friozinho na espinha que sentimos ao saber que, por sorteio, o Brasil enfrentaria o México, a Croácia e Camarões logo de saída. Há que se considerar também o papel que os protestos contra a Copa das Confederações tiveram nas manifestações de junho passado.
 
De certa forma, uma insatisfação difusa está instalada e se traduz de forma bem-humorada no jargão "padrão Fifa" , que passou a ser adotado, ironicamente, nas críticas populares a tudo o que há de errado nos serviços públicos. Vamos todos torcer para que o Brasil ganhe a Copa do Mundo de Futebol de 2014. Quem corre mais risco político em caso de derrota, entre os candidatos nas eleições de 2014, porém, indiscutivelmente, é a presidente Dilma Rousseff, que trocou o radinho de pilha pelo Twitter e decidiu fazer dos jogos uma plataforma para a própria reeleição. Quem se desloca recebe, quem pede tem preferência, diria o mitológico botafoguense Neném Prancha. Mas, para ganhar o jogo, é preciso fazer os gols.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Meu canudo de papel

Nas Entrelinhas: Luiz Carlos Azedo
Correio Braziliense - 06/12/2013

Em 2022, os mais jovens dessa geração nem-nem estarão com 23 anos, e os mais velhos, com 38, ou seja, farão parte de um enorme contingente de mão de obra que busca um lugar ao sol numa economia cujo futuro está sendo desenhado agora

Com o estilo que o caracteriza, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva resumiu o que vem sendo a sua maior preocupação com as próximas eleições. Foi durante a solenidade na qual receber o título de doutor honoris causa da Universidade Federal do ABC, que ele criou. Num dado momento do discurso, virou-se para a presidente Dilma Rousseff e tascou essa: "O maior legado que um pobre quer deixar para o filho é que ele tenha escolaridade e uma profissão. E, se essa profissão for a de doutor, minha presidenta, você não sabe o que é uma família feliz. Depois que ele se forma doutor, não espere que ele ficará agradecido. Ele vai para a rua fazer manifestação contra você. Nós precisamos continuar nos matando para garantir que ele tenha o emprego do sonho. Aí ele não vai mais sair para passeata."
Lula captou o descolamento de uma fatia do eleitorado que sempre o acompanhou e que escapuliu da base do governo, conforme ficou demonstrado nas manifestações de junho passado. São números que impressionam pela grandeza: o Brasil tem 50 milhões de jovens de 15 a 29 anos, muitos dos quais analfabetos funcionais. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), não estudam nem trabalham 9,6 milhões de jovens. No Nordeste, são 23,9%; no Norte, 21,9%; no Centro-Oeste, 17,4%. Mas é nos centros mais dinâmicos da economia que o problema político com os "nem-nem" se complica mais: no Rio de Janeiro, são 21,5%; em São Paulo, 17,5%; em Minas Gerais, 17,1%; no Paraná, 16,2% ; e no Rio Grande do Sul, 15,1%.
O ex-presidente da República montou uma espécie de governo paralelo no instituto que leva o seu nome, no Bairro do Ipiranga, em São Paulo, onde uma equipe de 10 ex-integrantes do governo prepara uma proposta de agenda para a comemoração do bicentenário da independência: "Eu já estou pensando no Brasil de 2022, quando a gente completar 200 anos de independência e fizer uma comparação do que era esse Brasil. Aí vai ser duro, Dilminha". Ou seja, projeta um ciclo longo de poder, de uma geração pelo menos, no qual deixa no ar qual será o seu papel. Alimenta o "Volta, Lula" como uma espécie de dom Sebastião, "O Desejado", o rei português que sumiu na batalha de Alcácer-Quibir (Marrocos, 1578) e cuja morte deu origem ao nosso messianismo popular, que inspirou os fanáticos das guerras de Canudos (BA) e do Contestado (SC). Os grandes arautos desse sebastianismo são os petistas e aliados insatisfeitos com Dilma e que gostariam de vê-lo de volta à Presidência.
Fazendo as contas, em 2022, os mais jovens dessa geração nem-nem estarão com 23 anos, e os mais velhos, com 38, ou seja, farão parte de um enorme contingente de mão de obra que busca um lugar ao sol numa economia cujo futuro está sendo desenhado agora. O que somos como país? Em primeiro lugar, o maior produtor de commodities agrícolas e minerais do mundo. Esse é o lugar que ainda temos reservado na nova divisão internacional do trabalho, enquanto a África não resolve seus conflitos étnicos e religiosos. Isso não é condição suficiente para garantir uma perspectiva de futuro para essa garotada, principalmente nas cidades. E aí que o problema do crescimento econômico ganha contornos dramáticos, ainda mais se forem mantidas as características atuais da nossa economia. Somos prisioneiros de um modelo macroeconômico saturado, no qual a produção de automóveis e o mercado imobiliário pontificam, enquanto nossa indústria de bens de consumo definha em razão da baixa produtividade e da má qualidade de seus produtos frente aos concorrentes, sobretudo os chineses. Dirá a presidente Dilma Rousseff: "isso é complexo de vira-latas". Será?
Desde a campanha de sua eleição, a presidente Dilma Rousseff vem prometendo taxas de crescimento do PIB superiores a 5% ao ano, com inflação na meta de 4,5%. No seu terceiro ano de governo, o crescimento médio é de 2%, com inflação de 6%. Bem que tentou uma estratégia de retomada do crescimento, reduzindo a taxa de juros a fórceps, mas a inflação cresceu. Vamos fechar o ano com a Selic de volta aos dois dígitos, ou seja, uma taxa de juros de 10% a.a. e que deve subir mais um pouquinho em janeiro. A grande aposta do governo é que a economia cresça pelo menos 3,5% no ano que vem, com inflação girando em torno de 5,5%, mas a expectativa do mercado é de um crescimento da ordem de 2,1% e uma taxa de inflação de quase 6%, segundo o boletim Focus de ontem. Qualquer turbulência pode levar a vaca pro brejo, segundo nove entre 10 analistas econômicos. Como estimular o "instinto animal" dos empresários e manter o apoio deles ao governo num cenário como esse? Ora, com o sebastianismo à la Lula, que acena com sua volta ao poder nas eleições do próximo ano ou, se tudo correr bem, em 2018. O problema é a garotada. Ao contrário do que acontece com os beneficiários diretos do Bolsa Família, que estão com o governo e não abrem, nossos jovens querem mais do que um canudo de papel. E ameaçam estragar a festa.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Desejo de mudança e status quo

Nas Entrelinhas: Luiz Carlos Azedo
Correio Braziliense - 04/12/2013

A marca registrada dos acordos que estão sendo tecidos, porém, é o continuísmo. Nada de mudança. Nem assim os conflitos entre o PT e o PMDB são superados

A maior contradição do projeto de reeleição da presidente Dilma Rousseff beira a esquizofrenia: faz um governo de continuidade em relação ao mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mas as pesquisas de opinião apontam que a maioria dos eleitores deseja mudanças. Indicadores negativos em relação aos serviços oferecidos à população — na educação, na saúde, na segurança, nos transportes, no combate à inflação etc. — corroboram essa necessidade, porém, o sistema de alianças que garante a sustentação do governo funciona como um muro de contenção. Esse status quo político é que deixa insatisfeita a população. Eis o dilema de Dilma Rousseff.

Como toda aliança muito ampla, que o Palácio do Planalto se esforça para preservar — haja vista a rodada de negociações realizadas no fim de semana pela presidente Dilma com a participação do ex-presidente Lula —, esse sistema de forças tem um programa raso, se é que existe. Sustenta-se principalmente no toma-lá-da-cá entre o Palácio do Planalto e suas lideranças no Congresso, com refregas que se acentuam na medida em que as eleições se aproximam. Toda vez que Dilma endurece o jogo com os aliados, sofre uma retaliação no Congresso. E la nave vá.

O eixo desse sistema de aliança é o pacto firmado entre o PT e o PMDB no segundo mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que garantiu a eleição de Dilma Rousseff em 2010 e o revezamento no comando da Câmara entre PT e PMDB. Esse pacto estremece sempre que o Palácio do Planalto contraria os interesses dos caciques do PMDB e demais aliados. Até recentemente, Dilma acreditava que poderia fazê-lo sem consequências negativas para o governo, muito pelo contrário, faturava junto à opinião pública uma certa aversão em relação aos aliados, que não escondia.

O ponto de inflexão nessa relação áspera com os aliados ocorreu logo após as manifestações de junho passado, quando Dilma tentou capitalizá-las. Propôs um plebiscito para a convocação de uma Assembleia Constituinte exclusiva, já nas próximas eleições, com propósito de realizar a reforma política. A manobra foi interpretada como uma tentativa de jogar o descontentamento da população exclusivamente contra o Congresso e foi prontamente rechaçada. A avaliação do governo e da própria presidente despencou junto a dos demais políticos. O PT acabou isolado pelo PMDB no Congresso. Coincidentemente, entre os petistas e seus aliados, recrudesceu a campanha do “Volta, Lula!”.

De lá pra cá, a postura de Dilma mudou. Ao mesmo tempo que busca melhorar sua avaliação nas pesquisas de opinião, paparica os aliados e realiza negociações políticas com objetivo de articular os palanques regionais para sua reeleição. A marca registrada dos acordos que estão sendo tecidos, porém, é o continuísmo. Nada de mudança. Nem assim os conflitos entre o PT e o PMDB são superados. No fim de semana, durante o encontro de cúpula dos dois partidos, isso ficou muito claro. O PT precisa escolher entre a reeleição de Dilma ou a eleição de seus candidatos aos governos estaduais. Rio de Janeiro, Minas Gerais, Ceará, Paraná, Bahia, Rio Grande do Sul e Pará são os estados onde é maior a fricção.

Miscelânea
Jovens— A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios divulgada na semana passada lança luzes sobre a grande insatisfação dos jovens, que deve recrudescer nas próximas eleições. O número de jovens de 15 a 29 anos que não estudava nem trabalhava chegou a 9,6 milhões no país no ano passado, isto é, uma em cada cinco pessoas da respectiva faixa etária. O Nordeste é a região na qual estava concentrada a maior parte da geração “nem-nem”: 23,9%. O Norte, por sua vez, tinha 21,9%. As regiões Sudeste (18,1%), Centro-Oeste (17,4%) e Sul (15%) estavam abaixo dos 20%. Faltam jovens qualificados para ocupar vagas nos setores mais modernos da economia e sobra mão-de-obra nas áreas que exigem menor qualificação. Conclusão: nossa política educacional e de formação de mão-de-obra fracassaram.

Renúncias — O deputado José Genoino (PT-SP), que se encontra em prisão domiciliar, surpreendeu os aliados ontem ao anunciar sua renúncia ao mandato com o propósito de evitar o constrangimento de um processo de cassação. Fez o que Valdemar da Costa Neto (PR-SP) e Pedro Henry (PP-GO), também condenados na Ação Penal 470, anunciaram, mas não concretizaram ainda. Resta saber se o ex-presidente da Câmara João Paulo Cunha (PT-SP) repetirá o gesto ou enfrentará o plenário.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Apesar do nosso ufanismo

Nas Entrelinhas: Luiz Carlos Azedo

Correio Braziliense - 02/12/2013

Os partidos e seus líderes não são capazes de traduzir da forma correta os anseios por mudanças que as pesquisas apontam. Tanto o governo como a oposição ensaiam seus discursos para isso, mas não empolgam
 
O Brasil tem tudo para dar muito certo, sabe-se disso. Os potenciais do nosso país, desde a carta de Pero Vaz Caminha, são cantados em prosa e verso. Não faltam obras de intelectuais brasileiros e até estrangeiros que apontam para o nosso futuro promissor, como nos clássicos de Affonso Celso, "Porque me ufano do meu país", escrito em 1900, e de Stefan Zweig, "Brasil, um país do futuro", de 1941, escrito em alemão e traduzido para o português. Sucessos absolutos à época em que foram lançadas, as duas obras alimentaram o ufanismo e o patriotismo de gerações e até hoje são estudadas.

O conde Affonso Celso escreveu para os filhos, após a queda da monarquia. É uma profissão de fé, na qual afirma: "No Brasil, com trabalho e honestidade, conquistam-se quaisquer posições. Encontra-se a mais larga acessibilidade a tudo, no meio de condições sociais únicas, sem distinção e divergência de classes, em perfeita comunicação e homogeneidade da população. A esperança constante de uma situação melhor anima a todos, e é esse o eficaz incentivo da indústria humana."
 
Austríaco-alemão, que fugiu do nazismo e se matou 15 meses após se encantar com o Brasil, Zweig escreveu em pleno Estado Novo. Por isso, acabou injustamente acusado de fazê-lo sob encomenda para Getúlio Vargas: "Alguém que acabou de fugir da absurda exaltação da Europa, saúda aqui a ausência completa de qualquer odiosidade na vida pública e particular, primeiramente como coisa inverossímil e depois como imenso benefício. A terrível tensão que há um decênio repuxa os nossos nervos, aqui desaparece, quase completamente; todos os antagonismos, mesmo os sociais, aqui, são muitíssimo menos acentuados e não têm uma seta envenenada. Aqui a política, com todas as perfídias, ainda não é o ponto cardeal da vida privada, não é o centro de todo o pens ar e sentir."
 
As duas obras apresentam incrível atualidade. Primeiro, refletem o discurso recorrente dos governantes brasileiros, mesmo naqueles momentos em que o país enfrenta dificuldades, diante das quais seus críticos são acusados de derrotistas e traidores da pátria. Foi assim, por exemplo, durante o regime militar, com a famosa campanha do "Ame-o ou deixe-o". Ainda é assim, nos dias de hoje, toda vez que o governo se vê criticado pela oposição por uma razão ou outra.
 
Temos boas razões para acreditar num futuro melhor. Bem ou mal, o Estado brasileiro hoje tem bases mais democráticas: os governos são eleitos pelo voto secreto, direto e universal; os legislativos funcionam com ampla liberdade; os partidos são livres; o Judiciário tem plena autonomia e independência para julgar. A economia brasileira é uma das cinco maiores do mundo. A nossa sociedade civil se destaca pela complexidade e diversidade. Mas a política, amarrada no fisiologismo e no patrimonialismo, na hora em que essas três esferas esperas públicas se relacionam, não diz a que veio. Prisioneira das elites, trava o desenvolvimento do país. A atividade produtiva não tem a escala necessária para superar nossas desigualdades sociais, que são sempre mascaradas.
 
Isso gera um mal-estar na sociedade brasileira difuso, que ainda não foi devidamente esclarecido. As manifestações de junho passado foram um reflexo disso. Os partidos e seus líderes não são capazes de traduzir da forma correta os anseios por mudanças que as pesquisas apontam. Tanto o governo como a oposição ensaiam seus discursos para isso, mas não empolgam a opinião pública. Enquanto isso, velhos preconceitos e iniquidades continuam vivíssimos. E nos assombram de repente, das formas mais inesperadas, ora num quebra-quebra de trens, hora num arrastão de crianças e adolescentes na praia. Ou como aqueles jovens pobres, negros e pardos que na tarde de sábado correram para dentro de um shopping de Vitória (ES), que é a quarta cidade do país em qualidade de vida, com medo da polícia. Assustaram lojistas e consumidores e aí mesmo é que foram presos, e obrigados a sentarem no chão e tirarem as camisas, de forma humilhante. Nada mais faziam do que se divertir num baile funk quando a polícia chegou para acabar com a festa.