O surpreendente choque entre a Polícia Federal e a Abin, com operações que parecem sair dos romances policiais, revela que a cooperação ilegal entre os dois órgãos era maior do que se supunha
Por Luiz Carlos Azedo
luizazedo.df@diariosassociados.com.br
Primeiro grande sucesso do samba, Pelo telefone é um marco inaugural da canção carnavalesca e da crítica musical graças ao comportamento da polícia. Tudo nesse samba é motivo de polêmica, a começar pela autoria, atribuída a Donga (Ernesto Joaquim Maria dos Santos) e Mário de Almeida, que em 1916 assinaram a primeira gravação pela Odeon, em vinil, com 78 rotações, na voz de Baiano e acompanhamento da banda Odeon.
O samba
Segundo depoimento de Donga, Pelo telefone teria surgido de uma estrofe cantada por um sujeito conhecido como Didi da Gracinda. Modesto, Mário de Almeida, cronista carnavalesco cujo apelido era Peru dos Pés Frios, se dizia apenas o “arreglador” dos versos. Outros sambas foram gravados antes de Pelo telefone, mas a glória do registro na Biblioteca Nacional coube a Donga, que compõe a santíssima trindade da nossa música popular com Pixinguinha e João da Baiana. Todos freqüentaram a Casa da Tia Ciata, na Praça Onze. Ali havia uma famosa roda de samba, da qual participavam Sinhô, João da Mata, Mestre Germano e Caninha, que também reivindicaram a autoria de Pelo telefone numa polêmica que marcou época.
O samba recebeu diversas versões e se eternizou graças à bagunça na polícia, que parece um problema insolúvel. A versão mais famosa foi inspirada numa campanha do jornal A Noite, em 1913, quando o vespertino instalou uma roleta no Largo da Carioca, em frente à redação, iniciativa dos repórteres Castelar de Carvalho e Eustáquio Alves. É cantada até hoje: “O chefe da polícia / Pelo telefone / Manda me avisar / Que na Carioca / Tem uma roleta/ Para se jogar... / Ai, ai, ai / O chefe gosta da roleta, ó maninha / Ai, ai, ai”. E, depois, arremata: “O chefe da Folia / Pelo telefone manda me avisar / Que com alegria / Não se questione para se brincar / Ai, ai, ai / É deixar mágoas pra trás, ó rapaz / Ai, ai, ai / Fica triste se és capaz e verás”.
A bagunça
Pelo telefone me veio à cabeça por causa do furdúncio envolvendo a Polícia Federal e a Abin, mais grave do que o diversionismo da polêmica sobre a Lei da Anistia entre a Advocacia-Geral da União (AGU) e a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, que ameaça levar a confusão aos quartéis. Ministro da Justiça, Tarso Genro dita regra sobre todos os assuntos que envolve a sua pasta, mas nem sempre tem solução para os mesmos. Tenta apenas minimizar o que está acontecendo. Enquanto isso, a bagunça se generaliza. Ronda, inclusive, ao Judiciário, onde o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Gilmar Mendes, e um magistrado de primeira instância da Justiça Federal, Fausto De Sanctis, se digladiam pela mídia.
Mestres do Direito e da Ciência Política ensinam que o governo é a forma mais concentrada de poder, mesmo quando há desgoverno. Afinal, o Estado exerce o papel de normatizar, arrecadar e coagir. Quando os governantes se omitem e relevam a hierarquia e a disciplina, sua inércia se encarrega de fazer com que a máquina estatal funcione sem direção, o que dá à burocracia características de “subgoverno”. Cada um faz o que quer, quando quer e como quer em sua alçada. Normatiza, arrecada ou coage, quando não junta uma coisa com a outra sob o manto da ilegalidade.
As disputas de poder na Polícia Federal já não se restringem aos interesses sindicais e corporativos. O surpreendente choque entre a Polícia Federal e a Abin, com operações que parecem sair dos romances policiais, revela que a cooperação ilegal entre os dois órgãos era maior do que se supunha. O jogo combinado entre delegados, promotores e juizes, no caso dos grampos e operações de busca e apreensão abusivos, também não começou com a Operação Satiagraha.
Na confusão, o diversionismo retórico do ministro Tarso Genro é preocupante. As trombadas do ministro da Justiça com as Forças Armadas, por mais que agradem a familiares de perseguidos pelo regime militar e movimentos de defesa dos direitos humanos, não são um bom caminho. De fato, há contradições que precisarão ser resolvidas, como é o caso da discussão sobre os arquivos dos órgãos de repressão do regime militar e a amplitude da Lei de Anistia para os agentes dos órgãos de segurança envolvidos com a tortura. A questão, porém, é saber se o governo Lula, às voltas com uma crise econômica mundial como há muito não se via, tem energia suficiente para administrar toda essa confusão e abrir novas frentes de batalhas. Duvido muito. É mais fácil a bagunça na PF e na Abin virar marchinha de carnaval.
Publicado hoje na coluna Nas Entrelinhas, do Correio Braziliense
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