domingo, 23 de novembro de 2008

As veias abertas

Nos Estados Unidos, a integração racial começou para valer com a doutrina Sullivan, que obrigou as empresas norte-americanas a ter um diretor negro na África do Sul e implodiu o apartheid

Por Luiz Carlos Azedo

Acabo de ler, emocionado, um artigo do escritor moçambicano Mia Couto intitulado “Se Obama fosse africano”. O tema desta coluna é correlato, mas optei por um título inspirado em Eduardo Galeano, estudioso do colonialismo e da dependência na América Latina. Vamos, pois, ao sarapatel histórico-político-antropológico.

Africanos
O que disse Mia Couto? Fez uma reflexão sobre a repercussão da eleição de Barack Obama na África, intensamente comemorada, seja em manifestações espontâneas do povo africano, seja em pronunciamentos e atos oficiais. Passada a euforia, da qual Mia Couto fez parte (diz que chorou tanto quanto na posse de Nelson Mandela na Presidência da África do Sul), pôs-se o escritor a imaginar o que aconteceria com Obama na África.
Primeiro, teria que esperar muito, porque os governantes costumam prorrogar seus mandatos e se reeleger seguidamente, em eleições fraudulentas. Seriam 41 anos no Gabão, 39 na Líbia, 28 no Zimbabwe, 28 na Guiné Equatorial, 28 em Angola, 27 no Egito, 26 em Camarões. Robert Mugabe, no Zimbabwe, terá 90 ao terminar o atual mandato. Segundo, na oposição, não teria espaço para fazer campanha. Com sorte, não seria assassinado. Terceiro, poderia ter a nacionalidade contestada, pois é filho de norte-americana. É o que acontece com Keneth Kauda, líder na independência da Zâmbia, país que já governou (ops!) por 25 anos. Quarto, Obama só é negro no Ocidente; se fosse africano, seria mulato, representante de “outra raça”, a do colonizador. Seria vilipendiado por sua condição racial. Quinto, segundo ainda Mia Couto, as posições de Obama em relação às mulheres e ao homossexualismo jamais seriam aceitas pela “pureza africana”.

Brasileiros
O Brasil é um país continental por causa da esperteza da nossa antiga elite branca escravocrata. O direito à propriedade privada — um dogma liberal — foi introduzido por D. Pedro I na Constituição de 1824, outorgada por ele, depois de fechar a Constituição de 1823, para salvaguardar os proprietários de escravos. Na Independência, para proteger o tráfico negreiro, tentou anexar Angola ao Brasil Imperial, mas os ingleses não deixaram. A então colônia africana, após a expulsão dos holandeses do Nordeste, foi recuperada muito antes de Moçambique, pela esquadra armada por proprietários fluminenses sob comando de Salvador de Sá.
Havia — e ainda há em alguns lugares — escravidão doméstica na África, por causa das guerras, desequilíbrios demográficos e fome. O que os portugueses fizerem no Brasil foi resgatar a velha escravidão romana e transformá-la na forma mais abjeta e brutal de acumulação pré-capitalista do mercantilismo. O Estado brasileiro consolidou nossas fronteiras graças ao extrativismo e à pecuária, mas foi com a escravatura que se sustentou durante o Império. Com a América espanhola esquartejada pelo manto libertador em repúblicas instáveis, dominadas por suas elites “crioulas”, nenhum país da América do Sul foi páreo para o Brasil, nem mesmo a aristocrática Argentina. O Paraguai bem que tentou, com Solano Lopes, ao ensaiar uma revolução industrial. Mas ameaçou interesses da Inglaterra e foi massacrada pela Tríplice Aliança (Argentina, Brasil e Uruguai). A consolidação de nossas fronteiras por Rio Branco pode ser considerada juridicamente perfeita, porém, deixou ressentimentos. Que o digam o Paraguai, a Bolívia e, agora, para nosso espanto, o Equador, com o qual não temos fronteiras.
Somos um país de mestiços, apesar de “embranquiçado” por D. Pedro II na segunda metade do século 19. A imigração européia sedimentou uma divisão geopolítica que às vezes opõe o Brasil meridional ao setentrional. É mais fácil a política oficial de cotas raciais — com a qual não concordo, apesar de ser pardo – agravar essa divisão do que acabar com a discriminação. Ainda mais porque não vai ao fundo da questão: a desigualdade social. Restringe-se às decadentes universidades públicas, dominadas pela classe média, enquanto a “elite branca” manda os filhos estudarem nas melhores universidades norte-americanas e européias. Nos Estados Unidos, a integração racial começou para valer com a doutrina Sullivan, que obrigou as empresas norte-americanas a ter um diretor negro na África do Sul e implodiu o apartheid. O resto foi conseqüência. Hoje, Obama é o presidente eleito e a política de cotas nas escolas norte-americanas está sendo revista pela Suprema Corte.

Publicado hoje na coluna Nas Entrelinhas do Correio Braziliense.

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