Estou lendo Vida e Destino, obra magistral de Vassili
Grossman, escrita no final dos anos 50, no embalo da "denúncia do culto
à personalidade" de Nikita Kruschev. Em 1960, o autor tentou publicar o
livro em fascículos na revista “Znamya”, mas a KGB apreendeu o manuscrito.
Depois, as autoridades lhe disseram que o livro provocaria mais prejuízos ao
regime socialista que “o Doutor Jivago”, de Boris Pasternak.
“Nem daqui a 200 anos, o seu romance será publicado”,
disse-lhe o grande ideólogo do Politburo, Mikhail Suslov. Li o informe do
Suslov sobre a invasão da Checoslováquia, um texto que circulou mimeografado
entre os militantes do PCB na década de 1970. Com base nesse texto, a direção e
os militantes do PCB, entre os quais me incluo, defenderam a intervenção
soviética.
A sua tese básica é era de que a democratização do
regime naquele país representava uma ameaça para todo o sistema socialista
porque havia, ainda, relações de produção capitalistas na sua economia, ao
contrário do que acontecia na União Soviética, onde tudo era do Estado, até o
sorveteiro da esquina.
Nesse sentido, a ditadura do proletariado, isto é,
do partido, era a forma de poder mais adequada para preservar o socialismo na
Checoslováquia, onde a abertura era promovida pelo próprio PCCh, sob a liderança
de Alexandre Dubcek, que foi deposto na intervenção soviética.
Segundo Suslov, se havia um país que poderia abrir
mão da ditadura do proletariado, no futuro, seria a URSS. Dependeria das
condições internacionais e do desenvolvimento das forças produtivas, a sua
evolução para um "Estado de todo o povo", rumo ao comunismo, como
mais tarde proclamou Brejnev. Quando Gorbatchov tentou democratizar o regime,
a União Soviética dissolveu-se sem um tiro, depois de uma tentativa de golpe
militar da cúpula do PCUS.
Grossman morreu dois anos depois da apreensão
dos manuscritos. Julgou-se que a obra teria sido destruída pelo KGB, mas um
amigo de Grossman e o cientista Andrei Sakharov conseguiram, em 1974,
fazer chegar uma cópia a França, onde primeiro foi editada. Na Rússia, foi
publicada, depois da Glasnost de Gorbachev, em 1988, mesmo assim uma versão incompleta; no Brasil, lançado no
ano passado, está em todas as livrarias.
Banalização do mal
O livro é mais um soco na boca do estômago dos antigos militantes do PCB, como O homem que amava os cachorros, do Leonardo Padura. Romance épico, transcorre durante a Batalha de Stalingrado e descreve os horrores da guerra. O livro choca pela narrativa fora dos campos de batalha, em particular a perseguição aos judeus.
Vida e destino tem por cenários um campo de
concentração nazista, uma cidade ocupadas pelo exército alemão e uma aldeia para a qual foram
removidos os refugiados da guerra quando Moscou foi evacuada. Em todo lugar,
em meio ao autoritarismo, ao burocratismo, o culto à personalidade e a fé cega
no partido. E o antissemitismo!
Escrevo sobre isso porque amanhã, 27 de janeiro, é o dia em que o Exército
Vermelho chegou a Auschwitz, na Polônia, e revelou os horrores do Holocausto.
Por isso mesmo, a data é comemorada em todo o mundo até hoje, tanto quanto o
levante do Gueto de Varsóvia. Até então, havia rumores de que os judeus estavam
sendo exterminados, mas não se sabia onde e como, nem o que realmente se passava ali.
No complexo de Auschwitz II–Birkenau foram assassinados mais de três milhões
de pessoas: 2,5 milhões de judeus foram gaseificados, 500 mil morreram de fome
e doenças. Também foram deportados e executados 150 mil poloneses,
23 mil ciganos romenos, 15 mil prisioneiros de guerra soviéticos, cerca de 400
Testemunhas de Jeová.
O mundo deve o Exército Vermelho a preservação do local, intacto, até hoje.
Estive lá há alguns anos, em viagem de férias pelo Leste europeu. É um horror,
mas merece ser visto. É a prova de que a racionalidade e o humanismo não são
a mesma coisa. https://www.youtube.com/watch?v=2MU5YPjziR4
É preciso reconhecer que a "banalização
do mal", como sustentou Hanna Arendt sobre o Holocausto, é um fenômeno inerente ao
totalitarismo de um modo geral e não apenas aos campos de concentração nazistas. Não foi à toa
que o livro de Grosmann esteve proibido por tanto tempo.
A censura
Somente em 2013, o Serviço de Segurança Federal transferiu para o Arquivo de
Literatura e Arte do Estado o manuscrito completo do romance "Vida e
Destino", que ficava em um arquivo de acesso restrito. Agora,
pesquisadores poderão analisar os rascunhos e os capítulos inéditos da obra. A
filha e a neta do escritor estiveram presentes na cerimônia de transferência.
Grossman foi um notável repórter na guerra. Correspondente no front do jornal militar soviético Krasnaia zvezda (Estrela vermelha), esteve em Stalingrado
e presenciou a libertação dos campos de extermínio nazistas de Majdanek
e Treblinka. Seus relatos sobre o que encontrou ali foram usados como
testemunhos de acusação nos tribunais de Nuremberg, quando criminosos de
guerra foram levados a julgamento. A mãe de Grossman, Yekaterina
Saviélievna, a quem Vida e destino é dedicado, foi assassinada pelos alemães em Berdichev.
Escreveu o livro ao longo de dez anos, de 1950 até 1960, como continuação de um romance sobre a Batalha de Stalingrado de grande sucesso (Por uma causa justa), mas nunca chegou a vê-lo publicada. Deprimido com a apreensão do livro, escreveu ao primeiro secretário do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética, Nikita Kruschev:
Escreveu o livro ao longo de dez anos, de 1950 até 1960, como continuação de um romance sobre a Batalha de Stalingrado de grande sucesso (Por uma causa justa), mas nunca chegou a vê-lo publicada. Deprimido com a apreensão do livro, escreveu ao primeiro secretário do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética, Nikita Kruschev:
"Os métodos com os quais querem deixar em sigilo tudo o que aconteceu
com o meu livro não são métodos de combate à mentira ou à calúnia. Não é assim
que se luta contra a mentira. Assim se luta contra a verdade. Não há nenhum
sentido em minha liberdade física, quando o livro ao qual eu dediquei a minha
vida encontra-se preso. Peço liberdade para o meu livro."
Os materiais foram mantidos na KGB, embora eles não contivessem a indicação
de sigilo oficial, e uma cópia do romance sobreviveu aos cuidados de um amigo
do escritor, o poeta Semion Lípkin. Em 1970, foi possível levar essa cópia para
o exterior.
Um filme a ser visto
A trama é um reencontro com o passado, mas o grande objeto da narrativa é a jornada de uma jovem noviça que inicia a vida adulta e é obrigada a conviver com erros e decepções de uma tia comunista, antes de fazer seus votos. A tia pecadora e cheia de culpas coloca em xeque sua vocação: como fazer o sacrifício dos votos se não conhece o pecado?
http://mais.uol.com.br/view/1xu2xa5tnz3h/trailer-legendado-do-filme-ida-04028C9B3160C8995326?types=A&
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