Nas Entrelinhas: Luiz Carlos Azedo
Correio Braziliense: 28/09/2014
Existe um fator mais antropológico do que político nesta
eleição, que é uma das razões de Marina Silva (PSB) resistir como uma
das protagonistas da disputa
Um aspecto relevante da
disputa eleitoral é o posicionamento do velho patriarcado do Norte e
Nordeste, formado a partir do período colonial. Essas oligarquias mantêm
incrível capacidade de sobrevivência, graças ao controle das vilas e
das pequenas cidades do interior e à grande influência nos negócios
regionais que dependem da União. A formação desse patriarcado e seus
métodos de controle social foram descritos por Gilberto Freyre em Casa
grande e senzala. Sobrevivem até hoje, como está demonstrado nestas
eleições.
O velho patriarcado preserva sua secular influência
política no Senado e serve de reserva estratégica para as forças do
Sudeste e do Sul que estão no poder. Além disso, contamina toda a
política com seus métodos fisiológicos e práticas patrimonialistas, a
ponto de fazer com que forças mais modernas e até progressistas sejam
subjugadas pelo “transformismo” partidário e acabem sucumbindo ao toma
lá da cá que domina o nosso parlamento.
A propósito da obra de
Gilberto Freyre sobre o patriarcado brasileiro, um parêntese sobre a
relação entre a Sinhá e a negrinha: a primeira vive na casa grande e,
vez ou outra, visita a senzala; a segunda frequenta a casa grande e
volta para dormir na senzala todos os dias. (É piada pronta, mas qualquer semelhança com as candidatas a presidente da República será mera coincidência)
“Desconstrução” e identidade
Agora,
falando sério, existe um fator mais antropológico do que político nesta
eleição, que é uma das razões de Marina Silva (PSB) resistir como uma
das protagonistas da disputa, apesar da enorme desvantagem de sua
campanha em termos de tempo de televisão, estruturas de poder, apoios
partidários e recursos financeiros. E do processo de “desconstrução” de
sua candidatura, que está em pleno curso e é facilitado pela ausência de
um estado-maior de campanha experiente em pleitos presidenciais.
Por
que, a uma semana do pleito, a candidata do PSB não sucumbiu à
polarização Dilma Rousseff (PT) versus Aécio Neves (PSDB), o que ainda
pode acontecer no decorrer desta semana? Por causa dos segmentos negros,
pardos e mulatos dos grandes centros urbanos sem representação política
que com ela se identificam. Uma espécie de voto étnico que se soma a
parcelas dos votos ético, evangélico e de protesto que compõem as outras
três vertentes eleitorais à margem das estruturas de poder e dos
partidos de sua candidatura. Trata-se de um universo político mais
virtual do que orgânico.
Vivemos a crise de identidade do
chamado “sujeito moderno”, cujo mundo de origem era a sociedade
industrial e suas ideologias. A busca de nova identidade na sociedade
pós-moderna — cujo sujeito é “desconstruído” — passa por questões novas,
que estão muito ao largo do espectro político-partidário e do conceito
de nação: a emancipação feminina e as mudanças de gênero, por exemplo.
Essa
crise tem também aspectos de caráter regressivo, como o ressurgimento
do fundamentalismo religioso e do radicalismo ideológico. Além disso,
ocorre outro fenômeno global: a reconstrução da identidade a partir da
origem étnica, seja por via do “chauvinismo”, como em algumas regiões em
conflito no mundo, inclusive na Europa; ou de forma “traduzida”, que é
aquela que predomina no Brasil, principalmente no caso das populações
meridionais de origem europeia ou asiática.
Pardos e mulatos,
durante muito tempo, porém, buscaram a simples “assimilação”, assim como
os descendentes dos povos indígenas nos centros urbanos, em
consequência das políticas de “branqueamento” da população (a partir da
segunda metade do século 19) e da carga de preconceito e discriminação
raciais que herdamos do regime escravocrata, embora mitigados pela
miscigenação.
Entretanto, essa identidade étnica nunca deixou de
existir e sempre se manifestou de forma vigorosa — mesmo antes dos
movimentos de inclusão dos afrodescendentes e de reconhecimento dos
direitos indígenas —, por meio da cultura, principalmente da
gastronomia, da dança e da música. Na política, porém, nunca teve grande
expressão.
É possível que uma parcela da população mestiça, como
diria Darcy Ribeiro, esteja se expressando “epidermicamente” pela via
eleitoral — à margem das questões partidárias ou programáticas. Seria
esse, como hipótese, o motivo da sobrevivência de Marina Silva, uma
ex-seringueira negra, aos duros ataques dos adversários. A cada dia,
porém, ela perde terreno para Dilma e Aécio.
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