quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

A fulanização do PSDB

Nas Entrelinhas: Luiz Carlos Azedo
Correio Braziliense - 31/12/2015

A reeleição interessava a todos os governadores eleitos e prefeitos, mas teve duas consequências terríveis, uma para o PSDB, e outra para a política em geral

Quando Fernando Henrique Cardoso deixou o Ministério da Fazenda para ser candidato à sucessão do presidente Itamar Franco, no embalo do sucesso do Plano Real, o PSDB ainda não era um partido nacional, nem o futuro presidente da República era o líder principal da legenda. Esse papel era exercido pelo então senador Mário Covas (SP). E o líder sindical Luiz Inácio Lula da Silva, este sim, o líder mais carismático da política nacional, encabeçava com folga a corrida eleitoral.

Covas, que havia sido derrotado em 1989, optou por disputar o governo de São Paulo e Fernando Henrique virou candidato a presidente. Alguns tucanos consideravam a missão um sacrifício. Havia, inclusive, setores que defenderam o apoio do PSDB ao petista, mas que refluíram diante do sucesso do Plano Real. O PT, por sua parte, havia se recusado a participar do governo Itamar e Lula ainda bateu de frente contra o real, que acabou se tornando fator decisivo da eleição.

O PSDB era um partido com forte presença em São Paulo, Paraná, Minas e Ceará, mas pequena influência nos estados do Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Bahia, Sergipe e Pará. Tinha, porém, um projeto nacional, focado na defesa da democracia, na descentralização política e administrativa, no combate ao patrimonialismo, na distribuição de renda e educação de qualidade, além de uma reforma política que fortalecesse os partidos e implantasse o parlamentarismo.

Já no primeiro turno das eleições, Fernando Henrique atropelou o candidato do PT e abriu caminho para a vitória dos candidatos do PSDB nos estados. O partido emergiu das urnas como uma força política hegemônica. Tasso Jereissati no Ceará, Eduardo Azeredo em Minas, Almir Gabriel no Pará, Marcelo Alencar no Rio de Janeiro, Mário Covas em São Paulo e Albano Franco em Sergipe foram fiadores da política de ajuste fiscal, das reformas administrativa, patrimonial e previdenciária e do combate à inflação que pautaram o governo FHC.

O país parecia ter um rumo claro, verbalizado com competência por um presidente respeitado no mundo intelectual e no meio político, o que levou as elites do país e as forças políticas da coalizão de governo a apoiarem a reeleição. Foi aí que começou a desandar o projeto nacional do PSDB. Afora o desgaste causado pelo debate sobre a reeleição em si, o governo sucumbiu à tentação de manter o real valorizado artificialmente na campanha eleitoral. O presidente reeleito acabou obrigado a fazer um ajuste após as eleições. A brutal desvalorização da moeda, na crise cambial de 1999, imediatamente foi taxada de “estelionato eleitoral” pelo ex-ministro Delfim Neto.

A reeleição interessava a todos os governadores eleitos e prefeitos, mas teve duas consequências terríveis, uma para o PSDB, e outra para a política em geral. A primeira foi “fulanizar"o projeto tucano, como se não houvesse outra liderança capaz de sucedê-lo na presidência e derrotar Lula. Tanto o governador de São Paulo, que seria o candidato natural, como o ex-ministro José Serra, eram considerados “desenvolvimentistas” pelo mercado e, por isso, não pareciam ser confiáveis. A segunda foi empurrar a fila pra trás, o que acontece em todos os partidos até hoje, dificultando a renovação política e a alternância de poder.

Candidato à sucessão de FHC, José Serra fez uma campanha em 2002 descolado do governo, cujas realizações não foram defendidas como deveriam durante as eleições. A principal delas, as privatizações, acabou sendo um divisor de águas na eleição. Desta vez, depois de morrer três vezes na beira da praia, Lula foi vitorioso.

No poder, Lula manteve a política de combate à inflação — câmbio flutuante, meta de inflação e superavit fiscal — e ampliou a escala da “focalização” dos gastos sociais nas camadas mais pobres da população para 13 milhões de famílias. Com o bordão “nunca antes nesse país”, “desconstruiu” o legado do PSDB no governo, o que resultou nas derrotas tucanas de 2006, com Geraldo Alckmin, e de 2010, com José Serra, outra vez.

Candidatos

O PSDB reencontrou o discurso com Aécio Neves, que tentou resgatar o legado de Fernando Henrique Cardoso, no rastro da mudança de rumo econômico do governo Dilma, o que resultou no desastre  atual. O tucano bateu na trave, sobretudo por causa do desempenho eleitoral em Minas Gerais. Mesmo assim, hoje, lidera todas as pesquisas de opinião sobre as eleições de 2018.

O problema é que o PSDB ainda não tem uma agenda nova para o país e sofre as consequências da “fulanização”. Serra, hoje senador, aposta no impeachment de Dilma Rousseff e numa aliança com o vice-presidente Michel Temer para viabilizar sua candidatura, mesmo que no PMDB. Aécio pleiteia na Justiça Eleitoral a cassação de Dilma e Temer por crime eleitoral, aposta na convocação de novas eleições já em 2016. E Geraldo Alckmin, no comando do governo paulista, perscruta o horizonte e se finge de morto, de olho nas eleições de 2018, quanto estará terminando seu mandato.

Em tempo: Feliz ano-novo pra todos, que venha 2016!



quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

O PT perdeu a narrativa

Nas Entrelinhas: Luiz Carlos Azedo
Correio Braziliense - 30/12/2015

A força do Estado já não resolve o problema eleitoral do partido, que se afasta de suas bases populares

Não satisfeita com a demissão de Joaquim Levy, a cúpula petista intensificou a pressão sobre o novo ministro da Fazenda, Nelson Barbosa, para que faça uma mudança no rumo da economia. O porta-voz das críticas foi o mesmo que detonou o ex-ministro, Rui Falcão, que preside o partido. Quando verbaliza ataques ao governo, o petista torna público o  que ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva fala nos bastidores.

Falcão afirma que o governo precisa adotar medidas para devolver à população a confiança perdida. Mira a base eleitoral do PT, que se esvai por causa da crise econômica, do isolamento politico da legenda e do escândalo da Petrobras. Em luta pela sobrevivência, o PT tenta resgatar a velha narrativa classista que levou a legenda ao poder. Não é fácil, porque o discurso eleitoral não corresponde à prática no poder.

Intitulado “Uma nova e ousada política econômica para 2016”, o artigo de Falcão no site do PT define a estratégia para sobreviver ao escândalo da Operação Lava-Jato, barrar o impeachment e evitar o desastre eleitoral anunciado. Trata-se de forçar a presidente Dilma Rousseff a gastar as reservas internacionais do país para baixar os juros e anabolizar a economia, aumentando os gastos públicos e facilitando os créditos para consumo, mesmo que a receita da União esteja em queda.

Os governadores petistas Fernando Pimentel, de Minas Gerais, e Wellington Dias, do Piauí, pressionam  a presidente Dilma a abrir os cofres para ajudar os estados. Para isso, fazem coro até com governadores de oposição. Os prefeitos Fernando Haddad, de São Paulo, e Luiz Marinho, de São Bernardo, joias da coraa petista, também estão em sérios apuros e cobram a liberação de verbas federais. O primeiro corre o risco de não se reeleger; o segundo, dificilmente fará o sucessor.

O rombo das contas do governo em novembro foi de R$ 40,05 bilhões, o que coloca em risco a surreal meta de déficit fiscal de R$ 120 bilhões, aprovada para livrar a presidente Dilma das pedaladas fiscais. Malabarismos contábeis com créditos e empréstimos do Banco do Brasil, Caixa Econômica e Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social estão sendo feitos pelo Tesouro para mascarar o rombo.

No lugar do ajuste fiscal, o PT propõe o programa “Por um Brasil justo e sustentável”,  elaborado pelo  economista Márcio Porchman, da Fundação Perseu Abramo, em parceria com entidades, como a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e o Movimento dos Sem Terra (MST). O fato de o partido, recentemente,  ter organizado manifestações em apoio a Dilma elevaram o cacife da legenda junto ao governo.

Entretanto, o discurso de Nelson Barbosa ao tomar posse na Fazenda, no qual anunciou a intenção de promover reformas na Previdência e trabalhista, frustrou as lideranças que foram às ruas em defesa do governo.

Lava-Jato

O PT busca uma nova narrativa para se manter no poder. A força do Estado já não resolve o problema eleitoral do partido, que se afasta suas bases populares. Cada vez é mais difícil mobilizar os militantes petistas não-encastelados no governo.

Construída com base em quatro vertentes – sindicalistas, militantes de antigas organizacões de esquerda, integrantes de comunidades eclesiais de base e intelectuais do meio acadêmico —, a estrutura do PT foi progressivamente controlada por políticos profissionais e  seus “operadores”, em detrimento dos quadros dedicados às políticas públicase  e aos movimentos sociais.

Esse processo desaguou numa sucessão de escândalos, que comprometeram irremediavelmente a imagem do partido, com a prisão e condenação de lideranças emblemáticas da legenda. O pior ainda está por vir. Doações de campanha milionárias, em troca do superfaturamento e do desvio de recursos da Petrobras, levarão a legenda ao banco dos réus. Grande parte desse dinheiro foi parar nas campanhas do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, na disputa de 2006, e da presidente Dilma, em 2010 e 2014.

terça-feira, 29 de dezembro de 2015

A balcanização do PMDB


Nas Entrelinhas: Luiz Carlos Azedo
Correio Braziliense - 29/12/2015 


Dificilmente, daqui pra frente, o PMDB manterá sua unidade. Foi irremediavelmente “balcanizado”, uma expressão utilizada na geopolítica, desde a desagregação do Império Otomano
O impeachment da presidente Dilma Rousseff saiu de pauta; entraram em cena as flores do recesso, como a polêmica sobre o bate-boca ou suposta agressão — depende do ponto de vista — ao compositor Chico Buarque por jovens antipetistas no Leblon, na Zona Sul do Rio, e os problemas de verdade da população, como a crise de saúde publica, quando nada porque estão em recesso os grandes atores institucionais desse processo, o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF).

O recurso constitucional legítimo para afastar o presidente da República numa crise ética, política, econômica e social como a que o país atravessa é o impeachment, mas isso é uma ruptura política nos marcos de uma democracia. Trata-se de apear do poder quem foi eleito pelo voto popular. É uma saída dura e complexa. Não é à toa que essa solução exija maioria de dois terços nas duas casas do Congresso e enfrente tantas restrições no chamado poder instalado, inclusive no Supremo.

Devido à impopularidade de Dilma e ao profundo envolvimento do PT no escândalo da Lava-Jato, ambos com incrível capacidade de dar tiros nos próprios pés, o impeachment ainda tem amplo apoio na maioria da opinião pública. Mas a força mais decisiva para aprová-lo, o PMDB, perdeu a capacidade de iniciativa política para viabilizá-lo. A oposição sozinha não tem força no Congresso para isso, a não ser que houvesse ampla mobilização popular. Sem povo na rua, não haverá impeachment.

O PMDB sempre foi uma federação de caciques regionais. Depois do governo Sarney, nunca conseguiu se unir. Nas eleições de 1989, o então governador paulista Orestes Quércia “cristianizou” o candidato a presidente da legenda, Ulysses Guimarães, o grande comandante da campanha das “Diretas, Já” e da Constituinte. Na eleição seguinte, em 1994, foi a vez de Quércia ser “cristianizado” na turma de Ulysses.

Daí por diante, a legenda nunca se encontrou, até que o atual presidente, Michel Temer, aceitou ser o vice da presidente Dilma, na sucessão de Lula em 2010, e aglutinou em torno da chapa a ampla maioria do partido. Mesmo assim, alas da legenda apoiaram os candidatos do PSDB José Serra, em 2010, e Aécio Neves, em 2014, na reeleição da chapa Dilma-Temer.

Dilma Rousseff, porém, nunca valorizou a presença do PMDB no governo. Temer sempre foi uma companhia desconfortável, a quem coube tarefas laterais, exceto no começo do segundo mandato. Após a eleição de Eduardo Cunha (PMDB-RJ) para a Presidência da Câmara, foi convocado a negociar a aprovação do ajuste fiscal em nome do Palácio do Planalto.

O agravamento da crise econômica, a oposição sistemática do PT ao ex-ministro da Fazenda, Joaquim Levy, e o boicote interno à atuação de Temer, porém, acabaram por estremecer ainda mais a relação do PMDB com o governo. É preciso destacar que a emergência de grandes manifestações de protesto contra Dilma e o profundo envolvimento do PT no esquema de propina da Petrobras, reduziram o poder de atração do governo sobre as bases da legenda.

O impeachment ganhou força como palavra de ordem unificadora da oposição nas redes sociais, que foi às ruas, e dos partidos de oposição PSDB, DEM, PPS, Solidariedade, mas nunca teve um comando ou líder reconhecido por todos. A partir do documento Uma Ponte para o futuro, elaborado pela Fundação Ulysses Guimarães, sob coordenação do ex-ministro Moreira Franco, com propostas de saída para a crise econômica, o vice-presidente Michel Temer passou a ser visto por setores empresariais e de oposição como uma alternativa de poder.

Desavenças

O PMDB, porém, não se unificou em torno de sua liderança. A presidente Dilma reagiu ao assédio da oposição e explorou as contradições internas da legenda. A atuação do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, contra o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB), um dos políticos enrolados na Lava-Jato, também ajudou. Suas articulações polêmicas a favor do impeachment contribuíram para afastar a sociedade do processo.

A cúpula do PMDB no Senado, encabeçada por Renan Calheiros (PMDB-AL), também foi muito fragilizada em razão das denúncias da Lava-Jato, que investiga, entre outros, os senadores Edison Lobão (MA), Jader Barbalho (PA), Romero Jucá (RR) e Valdir Raupp (RO), além do próprio Renan. Ao contrário de Cunha, que partiu para o confronto aberto, o grupo resolveu se opor ao impeachment e apoiar o governo.

Sem envolvimento com o esquema de corrupção na Petrobras, o líder do PMDB no Senado, Eunício de Oliveira (CE), por quem Dilma nunca teve grande consideração, emerge como nova liderança e pleiteia a presidência da Casa. Sempre foi um aliado do governo, em nenhum momento sinalizou apoio ao impeachment. Outros líderes do PMDB no Congresso, como o deputado Jarbas Vasconcelos (PE) e os senadores Ricardo Ferraço (ES) e Waldemir Moka, e o ex-ministro Geddel Vieira Lima (BA), fazem oposição ao governo e têm atuação independente.

Mas a estrela em ascensão é o jovem líder do PMDB na Câmara, Leonardo Picciani (RJ), que representa o grupo regional mais poderoso da legenda. Aliado preferencial da presidente Dilma entre os deputados, tem o apoio do governador do Rio de Janeiro, Luiz Fernando Pezão (PMDB); do prefeito carioca, Eduardo Paes (PMDB), e do poderoso presidente da Assembleia Legislativa fluminense, Jorge Picciani (PMDB), seu pai, além do ex-governador Sérgio Cabral.

Dificilmente, daqui pra frente, o PMDB manterá a unidade. Foi irremediavelmente “balcanizado”, uma expressão utilizada na geopolítica, desde a desagregação do Império Otomano, fenômeno que se repetiu com o fim do Império Austro-húngaro, após a 2ª Guerra Mundial, e, mais recentemente, com a desintegração da antiga Iugoslávia.

domingo, 27 de dezembro de 2015

Os intolerantes

Nas Entrelinhas: Luiz Carlos Azedo
Correio Braziliense - 27/12/2015
O bate-boca envolvendo o compositor e cantor Chico Buarque e um grupo de jovens da elite carioca é apenas uma gota d’água nesse oceano, mas inaugura um novo capítulo da radicalização política


Historicamente, a intolerância social está associada às religiões, principalmente às grandes crenças monoteístas, podendo chegar aos níveis mais extremos, como na Inquisição espanhola. É o que o escritor português José Saramago chamou de fator Deus, que pode ser ilustrado pelas atrocidades cometidas pelo estado Islâmico na Síria e no Iraque: “De algo sempre haveremos de morrer, mas já se perdeu a conta aos seres humanos mortos das piores maneiras que seres humanos foram capazes de inventar. Uma delas, a mais criminosa, a mais absurda, a que mais ofende a simples razão, é aquela que, desde o princípio dos tempos e das civilizações, tem mandado matar em nome de Deus”.

Na Idade Média, a intolerância religiosa foi associada ao poder absoluto do rei. As guerras religiosas na França se caracterizaram por atrocidades sem precedentes, como o massacre de protestantes de 1562 e a matança de São Bartolomeu (25 de agosto de 1572). Só terminaram 20 anos depois, quando Henrique 4º assinou o Edito de Nantes, concedendo liberdade de culto aos protestantes (1598). Em 1685, porém, Luís 14 revogou o Edito de Nantes,demoliu templos e promoveu emigração forçada de cerca de 300 mil protestantes.

Mas foi no Século XX, com o estado laico, que a intolerância atingiu seu mais alto grau: o estado alemão, sob domínio nazista, promoveu o maior genocídio de que sem tem conhecimento contra os judeus, em toda a Europa sob domínio do fascismo. O Holocausto resultou no assassinato de cerca de 10 milhões de pessoas. Entre 1948 e 1951, cerca de 700.000 sobreviventes emigraram da Europa para Israel. Muitos outros judeus deslocados de guerra emigraram para os Estados Unidos e para outras nações, inclusive o Brasil. O último campo para deslocados de guerra somente foi fechado em 1957.

A intolerância política também resultou em prisões em massa durante o regime stalinista na União Soviética, com remoções em massa e trabalho forçado. A partir do ano de 1930, o número de prisioneiros saltou de 76 mil para mais de 510 mil homens em Gulag e outros campos. Esse número diminuiu na Segunda Guerra Mundial, quando os presos foram para os campos de batalha. Entre 1945 e 1950, no pós-guerra, porém, chegou-se a mais de 2 milhões de prisioneiros.

Radicalização
O filósofo Sérgio Paulo Rouanet classificou a intolerância como “uma atitude de ódio sistemático e de agressividade irracional com relação a indivíduos e grupos específicos, à sua maneira de ser, a seu estilo de vida e às suas crenças e convicções”. A intolerância social no Brasil é uma herança colonial, dos latifúndios e da escravidão, cuja iniquidade migrou dos campos para as cidades no século passado. A intolerância política, porém, não é um resultado direto dessa contradição. Surge na esfera da luta pelo poder e das disputas de natureza ideológica.

Foi assim nas rebeliões do período regencial, nas revoltas tenentistas, na Revolução de 1930, no levante comunista de 1935, no suicídio de Getúlio Vargas e no golpe de 1964. Nos momentos de radicalização política, a tensão entre o Estado Leviatã, de Thomas Hobbes, e a liberdade do indivíduo se exacerba, como ocorreu durante o regime militar. O dogma do estado e do partido é racionalizado.

É aí que surge um ódio fundado na Razão. Fanatismo e sectarismo emergem como se fossem uma necessidade racional. A intolerância rompe os limites da irracionalidade. O dogmático não age apenas motivado pelos sentimentos. Na guerra ideológica, subsiste a razão de estado, incorporada pelos indivíduos que agem em seu nome. Atitudes agressivas e violentas encontram justificativas e defensores racionais.

No Brasil, há muita intolerância, aberta ou dissimulada. Desigualdade social, discriminação racial e preconceito de classe, tudo junto e misturado. No trabalho, nas escolas, nas universidades, nos meios de comunicação, onde menos se espera surgem as intolerâncias política, religiosa, cultural, étnica e sexual. No espaço doméstico, nos locais do trabalho, nos espaços públicos e privados, elas emergem como conflito entre indivíduos, mas muitas vezes resultam da relação entre o estado e a sociedade, o governo e a oposição.

O bate-boca envolvendo o compositor e cantor Chico Buarque e um grupo de jovens da elite carioca, que viralizou na rede ( https://www.youtube.com/watch?v=jdMSqt0wPAY ), é apenas uma gota d’água nesse oceano, mas inaugura um novo capítulo da radicalização política no Brasil, que opõe o governo e a oposição. Sua verdadeira vítima não é o artista famoso, que serve de porta-estandarte para petistas indignados. São os discriminados de sempre, que vivem a maior crise de saúde pública dos últimos tempos, no Rio de Janeiro, em meio à alta dos preços, ao desemprego e à violência urbana, muitas vezes policial.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Conto de Natal

Nas Entrelinhas: Luiz Carlos Azedo
Correio Braziliense - 24/12/2015

Fez mal a presidente Dilma Rousseff em não viajar para o Rio de Janeiro e desejar um Natal melhor aos pacientes do SUS. Sua popularidade poderia melhorar se fizesse uma visita ao Hospital Albert Schweitzer, em Realengo


A presidente Dilma Rousseff vai ganhar o melhor presente de Natal que poderia ter num ano de tantas dificuldades, o segundo netinho. Mas esse foi um mau pretexto para cancelar a viagem que faria ao Rio de Janeiro ontem, onde deveria inaugurar, em Deodoro, mais uma das instalações esportivas das Olimpíadas de 2016. Na avaliação do Palácio do Planalto, a agenda era uma fria: a ex-capital da República vive uma das piores crises do seu sistema de saúde, com os hospitais em colapso. Até a reserva estratégica de medicamentos para o período dos Jogos Olímpicos corre risco.

Para enfrentar a situação, acompanhado do chefe da Casa Civil, Jaques Wagner, o ministro da Saúde, Marcelo Castro, anunciou a criação de um gabinete de crise, do qual vão participar “toda a nossa rede federal, estadual e municipal para fornecer equipamentos, medicamentos e transferência de pacientes que forem necessários”. O maior problema é a infestação da cidade pelo mosquito Aedes aegypti. O Exército será mobilizado para combatê-lo. Além de transmitir a dengue e a chikungunya, o Aedes aegypti agora também transmite a zika, que tem o problema adicional das sequelas da enfermidade que é a microcefalia, “o grande problema de saúde pública que temos hoje no Brasil”, afirmou o ministro.

“O grave problema da saúde no Rio de Janeiro”, cuja rede hospitalar entrou em colapso por falta de verbas, também é uma ameaça ao sucesso das Olimpíadas, depois de tantos investimentos feitos pelo prefeito carioca, Eduardo Paes. Seu grande legado urbanístico será a reurbanização da antiga região portuária e a mudança de padrão da mobilidade no centro do Rio, com o veículo leve sob trilhos, além da Vila Olímpica, na Barra da Tijuca. Mas o êxito dos jogos é importante para a imagem internacional da Cidade Maravilhosa.

Caixa d’água
Os mata-mosquitos já foram uma das figuras características do Rio de Janeiro, nos tempos dourados de capital da República. Eles surgiram com Oswaldo Cruz, em 1904, durante a reforma sanitária que resultou na Revolta da Vacina. A reforma incluía a demolição das favelas e cortiços, expulsando seus moradores para as periferias, e a vacinação obrigatória contra a varíola. Naquela época, o centro do Rio abrigava pântanos e um grande manguezal; eram constantes as epidemias de tifo e febre amarela.

Entre 10 e 16 de dezembro daquele ano, a cidade virou um campo de batalha. A população depredou lojas, virou e incendiou bondes, fez barricadas, arrancou trilhos, derrubou postes, atacou a polícia com pedras, paus e barras de ferro. Saldo de 30 mortos e 110 feridos. Os alunos da antiga Escola Militar da Praia Vermelha, eternos bagunceiros, também se sublevaram. A saída foi decretar estado de sítio e mandar os líderes da revolta para o Acre. Por pura ironia, o presidente Rodrigues Alves, que nomeara Oswaldo Cruz no primeiro mandato (1902-1906), morreu de “gripe espanhola” logo no começo do segundo mandato, em 1918.

Uma variante desse vírus, o Influenza A subtipo H1N1, esteve de volta ao Brasil alguns anos atrás, com o nome de “gripe suína”. Mas voltemos ao Aedes aegypti, que virou uma constante nos verões brasileiros e, neste ano, se tornou um problema dramático, por causa do zika vírus, que provoca microcefalia nos recém-nascidos e deixa sequelas piores do que a paralisia infantil e a talidomida, pois atinge o cérebro das crianças. Uma das dificuldades para erradicar o mosquito é a proliferação de caixas d’água nas cidades brasileiras, cujo padrão de abastecimento contraria o princípio adotado em quase todas as cidades do mundo: a gravidade, que dispensa o armazenamento, ao contrário do sistema de bombeamento. Mas essa é outra história.

Fez mal a presidente Dilma Rousseff em não viajar para o Rio de Janeiro e desejar um Natal melhor aos pacientes do SUS. Sua popularidade poderia melhorar se fizesse uma visita ao Hospital Albert Schweitzer, em Realengo, na Zona Oeste, cujos médicos há três dias foram à 33º DP dar queixa contra a falta de condições para prestar atendimento à população, temendo punições futuras, de caráter criminal, por omissão de socorro. No Getúlio Vargas, na Penha, médicos enviaram carta ao Conselho Regional de Medicina (Cremerj) alertando sobre os graves problemas de desabastecimento de insumos e medicamentos essenciais.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

A segunda frente

Nas Entrelinhas: Luiz Carlos Azedo
Correio Braziliense - 23/12/2015

A presidente Dilma Rousseff tenta reagrupar as forças governistas para afastar o impeachment logo na abertura dos trabalhos legislativos. O recesso paralisou os partidos de oposição

 A apreciação do pedido de impeachment da presidente Dilma Rousseff pelo Congresso é uma batalha anunciada, inevitável, que ocorrerá mais cedo ou mais tarde, em razão da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o rito a ser seguido. Por mais polêmica que tenha sido a decisão, o processo foi iniciado e caberá ao plenário da Câmara, em última instância, aceitar ou não o pedido de afastamento. Caso seja acolhido, o mesmo terá que correr no Senado, ainda que o mesmo possa reverter a decisão da Câmara por maioria simples e só possa consumar o afastamento por dois terços dos senadores.

Por mais constrangedor que possa parecer, o encontro do presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), e dos líderes da Câmara com o presidente do STF, Ricardo Lewandowski, previsto para hoje, servirá para esclarecer as dúvidas acerca da decisão, que invadiu as prerrogativas dos deputados ao “legislar” sobre a eleição da comissão especial que decidirá sobre a admissibilidade do pedido. Mas essa confusão paralisou o processo e beneficia o Palácio do Planalto, que ganha tempo para reorganizar suas forças no Congresso. Esse é o estágio em que estamos.

Cunha promove uma manobra atrás da outra para escapar da cassação de seu mandato pelo Conselho de Ética da Câmara, sua situação é esdrúxula. Principal protagonista do processo de impeachment, está com um processo de cassação por quebra de decoro parlamentar em curso e sua rejeição na opinião pública é bem maior do que a de Dilma. Não tem a menor chance de sobreviver no cargo, mas ainda pode dar um abraço de afogado na presidente da República.

Esse cenário está congelado a partir de hoje, a não ser que surja algum fato novo, ligado à Operação Lava-Jato, que possa afastá-lo do cargo, mas isso depende de decisão do plenário do Supremo. A única possibilidade legal seria a prisão em flagrante, como aconteceu com o líder do governo no Senado, Delcídio do Amaral (PT-MS). É improvável isso. O descongelamento do processo, portanto, somente ocorrerá em fevereiro, quando o Congresso e o Judiciário voltarem a funcionar. Mas aí o país já estará em clima de carnaval.

Salva pelo gongo, a presidente Dilma Rousseff tenta reagrupar as forças governistas para afastar o impeachment logo na abertura dos trabalhos legislativos. O recesso paralisou os partidos de oposição, cuja atuação é essencialmente parlamentar. Dilma, porém, mobiliza os movimentos sociais e tenta reconstruir as pontes do governo com os setores produtivos.

O ano de 2015 foi péssimo tanto na política quanto na economia. As projeções para 2016 não são melhores. A troca de ministro da Fazenda até agora significa pouco. A posse de Nélson Barbosa na pasta agradou as bases petistas, que defendiam o “Fora, Levy!”, mas não dissiparam as expectativas negativas que turvam os horizontes do mercado. Dólar em alta, ações em baixa, inflação acima de dois dígitos, salários atrasados e demissões em massa contrastam com o discurso do novo ministro, que promete ajuste fiscal e crescimento econômico ao mesmo tempo.

Crime eleitoral
Uma segunda frente, porém, preocupa o Palácio do Planalto. Até 15 de fevereiro, Dilma precisa entregar sua defesa ao Tribunal Superior Eleitoral, contra um pedido de cassação do PSDB por crime eleitoral na campanha de 2010. O vice-presidente Michel Temer precisa se livrar da mesma acusação, caso Dilma venha a ser condenada. Ambos poderão ser cassados e, nesse caso, haverá novas eleições.

As expectativas são de que o caso leve três meses para ser julgado, pois ainda depende de diligências. A ameaça mais grave é a suposta existência de vasos comunicantes entre o escândalo da Petrobras e a campanha de Dilma Rousseff, quando nada porque a gráfica do Sindicato dos Bancários de São Paulo utilizada pelo tesoureiro do PT, João Vaccari Neto, para lavar dinheiro de propina da Petrobras, foi a mesma que imprimiu farto material de campanha de Dilma. O ministro do STF Gilmar Mendes, um dos mais duros críticos do PT, assumirá a presidência do TSE por ocasião desse julgamento.

Em caso de condenação de Dilma e Temer, a legislação prevê que o presidente da Câmara assuma a Presidência até a realização de novas eleições e posse do novo presidente eleito. Esse é o sonho de consumo do presidente do PSDB, Aécio Neves (MG), hoje o candidato favorito em todas as pesquisas. Mas essa hipótese não desagrada à ex-senadora Marina Silva (Rede) e pode ser uma possibilidade de volta ao poder para o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Meio barro, meio tijolo

Nas Entrelinhas: Luiz Carlos Azedo
Correio Braziliense - 22/12/2015

O Brasil ficou mais distante do Paraguai de Fernando Lugo, destituído pelo Congresso em 2012, e mais próximo da Venezuela de Nicolas Maduro, que acaba de perder a maioria no parlamento
 
Uma das características das crises é que ninguém sabe como se sairá dela. É mais ou menos o que acontece com o governo Dilma Rousseff, que comemora o resultado do julgamento do rito do impeachment pelo Supremo Tribunal Federal, no qual as teses palacianas foram vitoriosas, e vira o ano com novo ministro da Fazenda, Nélson Barbosa, ideólogo da fracassada “nova matriz econômica”. O Brasil ficou mais distante do Paraguai de Fernando Lugo, destituído pelo Congresso em 2012, e mais próximo da Venezuela de Nicolas Maduro, que acaba de perder a maioria no parlamento.

A estratégia de Dilma Rousseff para barrar o impeachment está sendo bem-sucedida graças ao procurador-geral da República, Rodrigo Janot, que virou o foco da Operação Lava-Jato para o PMDB. As ações do Ministério Público Federal contra o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), enfraqueceram as articulações da oposição e contribuíram para desmobilizar a opinião pública favorável ao afastamento. A quebra de sigilo do presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), deixou-o de joelhos perante o Palácio do Planalto. E a suspeita lançada sobre Michel Temer por conta de uma doação feita pela empreiteira OAS, caso confirmada, pode fulminá-lo como alternativa de poder.

Deu certo a estratégia para dividir o PMDB. Essa sempre foi a aposta de Dilma Rousseff. Pagou um preço caro por isso, pois a eleição de Eduardo Cunha a presidente da Câmara, que derrotou o candidato oficial, Arlindo Chinaglia (PT-SP), complicou a vida do governo no Congresso. Dilma explora as contradições entre o vice-presidente Michel Temer e os presidentes da Câmara, Eduardo Cunha (RJ), e do Senado, Renan Calheiros (AL).

Calheiros manteve-se aliado a Dilma e partiu para a disputa da presidência do PMDB com Temer. O líder da bancada na Câmara, Leonardo Picciani, recuperou seu cargo e se projeta como candidato a presidente da Câmara. Todos dão a cassação de Eduardo Cunha (PMDB-RJ) por quebra decoro como certa. Sua sucessão deve incendiar o PMDB, pois já surgem na disputa os nomes de Osmar Serraglio (PR), José Fogaça (RS) e Jarbas Vasconcelos (PMDB-PE). Chinaglia já trabalha sua candidatura na base governista; e Miro Teixeira (Rede), independente, corre por fora.

Pesquisas
 
Dilma parece ter um tijolo sólido, mas ele ainda é meio barro. Pesquisa Datafolha feita com deputados federais mostra que 42% são favoráveis ao afastamento, o equivalente a 215 votos. Para o impeachment passar na Câmara, são necessários, ao menos, 342 votos, ou dois terços do total. Faltam, portanto, 127 votos. Do outro lado da disputa, 31% dos parlamentares afirmaram que votariam contra a aprovação do impeachment da presidente. Seriam 159 votos garantidos pró-Dilma. A decisão está nas mãos de uma parcela de 27% dos deputados, equivalente a 138 parlamentares, que ainda não se definiram ou não responderam à pesquisa.

Outra pesquisa Datafolha revelou que 65% dos entrevistados defendem que o Congresso abra um processo para afastá-la do Palácio do Planalto e apenas 30% querem o oposto. Para 38%, o vice-presidente Michel Temer faria um governo “igual” ao de Dilma. Para 30%, seria melhor que o de Dilma. E 20% acreditam que um governo Temer seria pior. Apesar de ser baixo o percentual dos que têm uma avaliação positiva de um eventual governo Temer, o índice positivo (18%) é superior ao registrado hoje por Dilma (12%), assim como a desaprovação. Temer seria rejeitado por 32%. O índice de Dilma contabiliza 64%.

Noves fora as surpresas da Lava-Jato, que pode fulminar o PMDB, a terceira variável do processo é a situação econômica, a mais decisiva. A mudança de ministro da Fazenda promoveu um reencontro da presidente Dilma Rousseff com os movimentos sociais e a frente anti-impeachment que defende sua permanência no poder, mas a posse de Nélson Barbosa na pasta provocou uma inédita reação negativa do mercado.
Normalmente, as expectativas são positivas quando um novo ministro assume. Ontem, a agência de classificação de risco Moody’s anunciou que seguirá a Standard & Poor’s e a Fitch e cortará a nota de crédito da dívida do país para grau especulativo, a Bovespa fechou em queda e o dólar passou a barreira dos R$ 4,00. Ao dar posse ao ministro Barbosa, Dilma cobrou a retomada do crescimento. É pagar pra ver. Em tempo: o Paraguai vai bem, obrigado; já a Venezuela...

domingo, 20 de dezembro de 2015

Supremas contradições

Nas Entrelinhas: Luiz Carlos Azedo

Correio Braziliense - 20/12/2015
 O STF tornou mais difícil, mas sepultou a tese petista de que impeachment é golpe, pois não revogou a decisão do presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), de iniciar o processo de impedimento de Dilma.

A maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), na decisão que emparedou a Câmara dos Deputados e deu superpoderes ao Senado para decidir sobre o afastamento da presidente Dilma Rousseff do cargo, até que seja julgado o seu pedido de impeachment pelos senadores, exumou velhas teses federalistas de James Madison (1751-1836), um dos pais da democracia norte-americana. Ele tinha verdadeira ojeriza à Câmara dos Deputados e atribuía ao Senado o papel de guardião da federação.

Bem que o ministro-relator, Luiz Edson Fachin, em parecer antológico, tentou preservar as prerrogativas da Câmara, ao resgatar a jurisprudência firmada por ocasião do impeachment do ex-presidente Collor de Mello e a lei do impeachment, de 1950. Mas já havia tirado o gênio da garrafa ao acolher a liminar do PCdoB que questionava o rito adotado pelo presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ). Fachin organizou a oposição a si próprio ao provocar o Ministério Público Federal, a Advocacia-Geral da União e o Senado, além de distribuir seu voto com antecedência aos pares, que acabou vazando.

O ministro Luís Roberto Barroso, que contestou o parecer de Fachin e liderou a maioria da Corte ao reformar as atribuições da Câmara, uma questão crucial para a relação entre os poderes, avocou para o Supremo Tribunal Federal (STF) um papel reformador de caráter mais iluminista do que democrático; e mudou a hierarquia do Congresso, subordinando a Câmara ao Senado, no qual a representação de São Paulo (31,9 milhões de eleitores), por exemplo, é igual à de Roraima (299 mil eleitores). A Câmara representa o povo; o Senado, os estados.

O STF reformou o regimento interno da Câmara ao determinar a formação de uma comissão biônica para apreciar a admissibilidade do pedido de impeachment da presidente Dilma Rousseff. Indicada pelos líderes, será homologada à moda soviética pelos 513 deputados, com voto aberto e não secreto, como era de praxe nas eleições do Congresso. Se a maioria do plenário da Câmara rejeitar a chapa oficial, a comissão será eleita pela minoria? Ou não será instalada comissão alguma? Mesmo assim, o STF tornou mais difícil, mas sepultou a tese petista de que impeachment é golpe, pois não revogou a decisão do presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), de iniciar o processo de impedimento de Dilma.

Iluminismo

Montesquieu dizia que o Judiciário é o mais fraco dos poderes e atribuía aos monarcas o papel de poder moderador, para que houvesse equilíbrio entre os demais poderes nos regimes parlamentaristas. Coube aos “federalistas” norte-americanos resolver essa equação nos regimes republicanos. Enquanto Alexander Hamilton (1755-1804) pregava a independência integral das cortes de justiça para que pudessem defender a integridade de uma Constituição limitada contra eventuais violações por “atos legislativos”, Madison fazia severas restrições à Câmara dos Deputados. Dizia que seus membros “serão recrutados naquela classe de cidadãos que gozam de menos simpatia na massa do povo e são mais propensos a defender o sacrifício de muitos em proveito de poucos”.

Indagava: “Quem serão os eleitores dos deputados federais? Não os ricos mais do que os pobres, os letrados mais do que os ignorantes; não os orgulhosos herdeiros de nomes famosos mais do que os humildes filhos de obscuras e desafortunadas famílias. O eleitorado será constituído pela grande massa do povo (...)”. Madison defendia a existência do Senado para neutralizar as pressões da opinião pública: “Há determinadas ocasiões nos assuntos públicos em que o povo, estimulado por alguma paixão anormal ou vantagem ilícita, ou ainda iludido por embustes ardilosos de pessoas interessadas, possa clamar por medidas que, mais tarde, ele será o primeiro a lamentar e condenar”.

O raciocínio serve para o impeachment de Dilma, mas, convenhamos, também vale para a reeleição da presidente da República. Voltemos, porém, a Madison: “Nesses momentos críticos, quão salutar será a interferência de um grupo de cidadãos moderados e respeitáveis, a fim de deter a orientação errada e evitar o golpe preparado pelo povo contra si mesmo, até que a razão, a justiça e a verdade retomem sua autoridade sobre o espírito público!”

Parece que Madison baixou no terreiro, porém, no país da jabuticaba, esse “americanismo” é uma ideia fora de lugar. Não temos Constituição enxuta, direito anglo-saxão e sistema bipartidário secular. Além disso, a cúpula do Senado está muito mais envolvida no escândalo da Lava-Jato do que as lideranças da Câmara, embora seu presidente, Eduardo Cunha, esteja se afogando na lama. Por fim, recentes decisões do próprio STF sobre a legislação eleitoral e partidária facilitaram a fragmentação fisiológica e patrimonialista do sistema partidário.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Pediu pra sair, Levy?

Nas Entrelinhas: Luiz Carlos Azedo
Correio Braziliense - 17/12/2015

O líder do governo faz uma emenda ao Orçamento da União, a presidente da República acolhe a proposta e o ministro da Fazenda se desmoraliza de vez
 
 
Neófito na política, ainda mais numa conjuntura mórbida como a que o país atravessa, o ministro da Fazenda, Joaquim Levy, chega a ser patético ao comentar o anúncio do rebaixamento da nota de crédito do Brasil pela agência de classificação de risco Fitch: “Nós temos que partir em defesa do Brasil”, disse, ao sair de um encontro com o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL).
 
A retórica nacionalista é um velho expediente de governos enfraquecidos, alguns costumam até arranjar um clima de guerra com os vizinhos, como a Venezuela, por exemplo. Mas não se encaixa no figurino do atual ministro da Fazenda, que está sendo derrubado do cargo pelo ministro do Planejamento, Nelson Barbosa, o grande ideólogo da nova “matriz econômica”, que não perde uma chance de fazer um contraponto ao colega que deveria liderar a equipe econômica.

Deveria é a expressão mais correta, porque Levy não lidera mais nada. Foi desautorizado pelo líder do governo na Comissão Mista do Orçamento, Paulo Pimenta (PT-RS), que apresentou uma emenda reduzindo a meta de superavit fiscal de 2016 de 0,7% para 0,5% do Orçamento da União. A rigor, isso também não quer dizer muita coisa, uma vez que o Palácio do Planalto está mais preocupado em gastar do que em economizar recursos.

Em tempos idos, o então ministro da Fazenda do governo Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, na implantação do Plano Real, mirando o superavit fiscal, se opôs ao aumento real do salário mínimo, posição defendida publicamente pelo líder do governo na Câmara, Roberto Freire, com apoio do presidente da República. O ministro da Fazenda bateu o pé, Itamar recuou e não restou a Freire a não ser alternativa de pedir demissão da liderança. O deputado Luís Carlos Santos (PMDB-SP) assumiu o seu lugar.


No governo Dilma Rousseff, o líder do governo faz uma emenda sob encomenda do Planejamento, a presidente da República acolhe a proposta e o ministro da Fazenda se desmoraliza de vez. Deveria pegar o boné e ir pra casa na hora, pois o mercado já não acredita no que fala. Ainda mais depois de um ano que começou com uma meta ambiciosa de R$ 56 bilhões de superavit fiscal e terminou com um rombo de R$ 120 bilhões.


A presidente da República propôs aos parlamentares a redução da meta de superavit primário das contas públicas para R$ 30,58 bilhões — o equivalente a 0,5% do PIB — com uma regra de abatimento até o montante desse mesmo valor, que funcionará como uma banda de flutuação de 0% a 0,5% do PIB. Levy defendia a todo custo a manutenção da meta em 0,7% do PIB (R$ 43,8 bilhões), compromisso feito a ele pela própria presidente Dilma depois que o Brasil perdeu o grau de investimento pela Standard & Poor’s.

Guinada à esquerda


O ministro da Fazenda havia ameaçado deixar o governo caso sua proposta não fosse aceita, mas até agora não saiu. Faz o mesmo papel ridículo do ex-ministro Guido Mantega, que permaneceu no cargo esperando o sucessor durante meses a fio. Na verdade, Dilma sinaliza uma guinada à esquerda na política econômica, em razão dos acordos que fez com os movimentos sociais para que a defendam contra o impeachment.


O mecanismo aprovado indica que o governo vai gastar mais do que arrecada, já que o superavit poderá ser zerado para pagamento de restos a pagar processados de investimentos (despesas contratadas em um ano e pagas no seguinte), ações de vigilância sanitária, combate a endemias e reforço do SUS, ações de combate à seca, segurança hídrica e mitigação dos efeitos e recuperação de áreas afetadas por desastres.


Ou seja, as obras do PAC, o combate à epidemia de Zika, o Bolsa Família e a ajuda aos atingidos pelo desastre ambiental de Mariana servirão de pretexto para quebrar o país. Se o orçamento já larga sem compromisso com o superavit, o resultado previsível ao final do próximo ano é mais deficit fiscal e aumento da dívida pública. Tanto que ministro do Planejamento, Nelson Barbosa, já canta de galo: “É preciso dispor de espaço para acomodar oscilações não previstas de despesas e, sobretudo, de receitas”, explicou.

Segundo ele, o exemplo mais eloquente da necessidade de flexibilizar metas é a queda de arrecadação. “O gasto previsto está sendo cumprido, mas as receitas ficaram muito aquém das estimativas”, diz ele. Por que será? O governo já pôs a culpa na recessão, na inflação e do desemprego na crise mundial; agora, responsabiliza a Operação Lava-Jato e a proposta de impeachment de Dilma defendida pela oposição. É muita cara de pau essa inversão entre causa e efeito, mas faz parte do jogo.


Como se sabe, uma sucessão de intervenções desastradas de Dilma na economia, desde que assumiu o cargo, provocou a crise que o país atravessa, num cenário internacional que já não era o de expansão do mercado de commodities agrícolas e minerais. Além disso, certas mudanças demográficas que ajudaram o governo a combater a miséria, agora atuam no sentido contrário, por seu impacto na Previdência Social.


Erros desestruturadores da economia, em países continentais, costumam ter consequências catastróficas. Se o governo insistir em voltar à chamada “nova matriz econômica”, como parece ser a intenção de Dilma Rousseff, o país correrá o risco de entrar num longo período de depressão com inflação ascendente, que já é o cenário de 2016.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Virada de vante

Nas Entrelinhas: Luiz Carlos Azedo
Correio Braziliense - 16/12/2015 

 Cunha sai ferido de morte da operação de ontem, mas resiste aos apelos — inclusive de Temer — para que renuncie ao cargo de presidente da Câmara

 Com as operações de busca e apreensão realizadas pela Polícia Federal em mais uma fase da Operação Lava-Jato, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, atirou no presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ); nos ministros de Ciência e Tecnologia, Celso Pansera, e do Turismo, Henrique Eduardo Alves; no senador Edison Lobão (PMDB-MA); no deputado Aníbal Gomes (PMDB-CE); no ex-senador Sérgio Machado, ex-presidente da Transpetro; e no prefeito de Nova Iguaçu (RJ), Nélson Burnier, caciques peemedebistas, e acertou também no vice-presidente Michel Temer — politicamente falando, é claro.

O presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), escapou de levar um balaço no peito graças ao ministro Teori Zavascki, do Supremo Tribunal Federal, que rejeitou o pedido de busca e apreensão em sua residência solicitado pelo Ministério Público. Mas sai arranhado em razão da operação realizada na sede do diretório do PMDB de Alagoas, em Maceió, além de fato de que alguns dos investigados serem pessoas muito próximas a ele. Por pouco, uma bala perdida não acerta o ex-presidente José Sarney.

A operação comandada por Janot, que tem nome de almirante, foi como a virada de vante de uma canhoneira, que atirava a bombordo e agora dispara pra boreste. Desviou o foco da opinião pública da cúpula do PT e do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que estão sob a mira dos procuradores e do juiz federal Sérgio Moro, de Curitiba, para os caciques do PMDB, que são investigados com autorização do ministro Teori, relator da Lava-Jato no Supremo Tribunal Federal. A busca e apreensão nos escritórios do senador Fernando Bezerra (PSB-PE) também serviu como tiro de advertência ao clã Arraes, em Pernambuco.

A Polícia Federal fez buscas e apreensões nos estados do Pará, de Alagoas, São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco e Rio Grande do Norte, além de Brasília. A residência oficial do presidente da Câmara e a Diretoria-Geral da Casa também receberam a visita dos agentes federais. A PF esteve ainda na sede do PMDB em Maceió. Batizada de Catilinárias, a operação foi realizada no dia em que o Conselho de Ética se reuniu para votar a admissibilidade do pedido de cassação de Eduardo Cunha, que foi aprovado, e às vésperas da sessão do Supremo Tribunal Federal (STF) que definirá o rito de tramitação do pedido de impeachment da presidente Dilma Rousseff.

Recado
 
O nome da operação foi um recado político para Cunha, pois faz referência um dos quatro discursos proferidos pelo cônsul romano Cícero contra o senador Catilina, que tentava um golpe para derrubar a República romana: “Até quando, ó Catilina, abusarás da nossa paciência? Por quanto tempo ainda há de zombar de nós essa tua loucura? A que extremos se há de precipitar a tua audácia sem freio? (...)”

Considerando o contexto político e o restante do texto, pode ser também um recado para o vice-presidente Michel Temer: “(...) Nem a guarda do Palatino, nem a ronda noturna da cidade, nem os temores do povo, nem a afluência de todos os homens de bem, nem este local tão bem protegido para a reunião do Senado, nem o olhar e o aspecto destes senadores, nada disto conseguiu te perturbar? Não sentes que os teus planos estão à vista de todos? Não vês que a tua conspiração a têm já dominada todos estes que a conhecem? Quem, de entre nós, pensas tu que ignora o que fizeste na noite passada e na precedente, em que local estiveste, a quem convocaste, que deliberações foram as tuas?”

Cunha sai ferido de morte da operação de ontem, mas resiste aos apelos — inclusive de Temer — para que renuncie ao cargo de presidente da Câmara. Para a oposição, tornou-se um obstáculo ao impeachment, embora, ironicamente, seja o seu principal protagonista. De certa forma, os fatos de ontem favorecem o Palácio do Planalto e o Ministério Público, que pleiteiam a anulação da eleição da comissão especial encarregada de apreciar a admissibilidade do pedido de impeachment apresentado pelos juristas Miguel Reale Júnior, Hélio Bicudo e Janaína Paschoal e pela oposição.

O relator do impeachment no STF, ministro Luiz Edson Fachin, ontem distribuiu seu voto aos colegas. Com 100 páginas, foi mantido em sigilo. Nem todos os ministros aceitaram a oferta antecipada do texto, como foi o caso de Marco Aurélio Mello, que prefere tomar conhecimento de seu conteúdo durante a leitura na Corte. A operação de ontem serviu como uma espécie de limpeza de terreno para o STF estabelecer o rito do impeachment com a cúpula do Congresso de joelhos.

No Palácio do Planalto, houve vibração com a operação, apesar do boato de que um dos ministros da Casa seria alvo de busca e apreensão da Lava-Jato, o que deixou o ministro da Comunicação Social, Edinho Silva, de orelha em pé. A pesquisa de Ibope divulgada ontem, porém, foi um banho de água fria: a maneira de governar de Dilma Rousseff continua amplamente desaprovada: 82%. Somente 14% têm uma avaliação positiva da forma como a presidente administra o país. A confiança em Dilma também é baixa: 18%. Outros 78% não confiam na presidente.

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

A Lava-Jato e o impeachment

Nas Entrelinhas: Luiz Carlos Azedo
Correio Braziliense - 15/12/2015

Enquanto as investigações da Lava-Jato avançam em direção ao “núcleo de poder”, aprofundando a crise ética, a crise política aguarda decisão do Supremo Tribunal Federal (STF)

 Os procuradores da Operação Lava-Jato, em Curitiba, denunciaram ontem o pecuarista João Carlos Marques Bumlai e mais 10 pessoas por suspeita de desvio de recursos da Petrobras. A escolha da Schahin Engenharia, em 2009, para o contrato de operação do navio-sonda Vitória 10.000 pela área internacional da Petrobras, no valor de US$ 1,6 bilhão, segundo as investigações, foi acertada para quitar dívidas do Partido dos Trabalhadores.

Bumlai está detido na carceragem da Superintendência da PF, em Curitiba, com o ex-diretor da área Internacional da Petrobras Nestor Cerveró. Numa das operações fraudulentas, Bumlai fez um empréstimo junto do Banco Schahin que nunca foi pago. O valor de R$ 12 milhões (sem correções) teria sido usado para quitar dívidas do PT. Em troca, Bumlai teria agido para que o Grupo Schahin fechasse o contrato de operação do navio-sonda Vitória 10.000. O PT alega que foram doações legais.

Os procuradores afirmam que entre outubro de 2006 e dezembro de 2009, Mílton, Fernando e Salim Schahin ofereceram US$ 1 milhão em propina para Eduardo Musa, gerente da Petrobras. O pagamento da propina teria sido intermediado por Fernando Baiano e João Vaccari Neto, atendendo a pedido de José Carlos Bumlai. O procurador coordenador da força-tarefa da Lava-Jato, Deltan Dallagnol, acusa o pecuarista de ser um operador do PT. Bumlai nega as acusações.

Dallagnol diz que intermediários como Bumlai são “ligados ao núcleo de poder”, mas isso “ainda demanda mais investigação”. Segundo o Ministério Público Federal, os denunciados nessa fase não eram os destinatários finais do dinheiro.

Os ex-diretores da Petrobras Jorge Zelada e Nestor Cerveró e João Vaccari Neto, presos no Complexo Médico-Penal, na Região Metropolitana de Curitiba; o lobista Fernando Soares, que cumpre prisão domiciliar; e Eduardo Musa, ex-gerente da Petrobras, colaboram com as investigações, em acordo de delação premiada. Foram denunciados com Maurício de Barros Bumlai e Cristiane Barbosa Bumlai, filho e nora de Bumlai; Salim Taufic Schahin, Mílton Taufic Schahin e Fernando Schahin.

Noutra ponta da Operação Lava-Jato, o juiz Sérgio Moro, de Curitiba, condenou ontem o empreiteiro Gérson de Mello Almada, sócio e ex-vice-presidente da Engevix, a 19 anos de reclusão, por organização criminosa, corrupção ativa, lavagem de dinheiro. Também foram condenados o doleiro Alberto Yousseff a 19 anos e dois meses de reclusão; Paulo Roberto Costa, ex-diretor da Petrobras, 14 anos e 10 meses de reclusão; e Carlos Alberto Pereira da Costa, por lavagem de dinheiro, a prestação de serviços e multa.

Foram constatadas fraudes e desvio de recursos nos contratos da empresa com a Petrobras nas refinarias Presidente Getúlio Vargas (Repar), Abreu e Lima (RNEST), Landulpho Alves (RLAM), Presidente Bernardes (RPBC), Paulínea (Replan), Gabriel Passos (Regap) e no Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj).

Não sabiam

Enquanto as investigações da Lava-Jato avançam em direção ao “núcleo de poder”, aprofundando a crise ética, a crise política aguarda decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) para ter um desfecho. O ministro Luiz Fachin deverá apresentar seu parecer sobre o rito a ser adotado para apreciação do pedido de impeachment da presidente Dilma Rousseff. A comissão especial eleita para apreciar sua admissibilidade está sub judice.

Trava-se uma batalha na qual a Advocacia-Geral do Senado, a Advocacia-Geral da União e a Procuradoria-Geral da República divergem do procedimento adotado pelo presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ). Discute-se a validade da eleição pelo voto secreto da comissão especial encarregada de apreciar a admissibilidade do pedido e a competência da Câmara para decidir o afastamento da presidente Dilma até seu julgamento pelo Senado.

A tendência do STF é se basear no procedimento adotado por ocasião do impeachment do ex-presidente Collor de Mello, mas o ministro Fachin, relator do caso, pode surpreender. Pretende compatibilizar a velha lei do impeachment, de 1950, com a Constituição de 1988. Independentemente disso, porém, o Palácio do Planalto intensifica a campanha para desqualificar o impeachment como um dispositivo constitucional legítimo, acusando a oposição de golpista por recorrer a ele.

Para isso, convergem a retórica do Palácio do Planalto e da cúpula do PT, no sentido de que a presidente Dilma Rousseff nada tem a ver com a roubalheira na Petrobras e que as “pedaladas fiscais” não são motivo para impeachment. Embora fosse presidente do Conselho de Administração da empresa durante o governo Lula, Dilma não sabia de nada da roubalheira na estatal. O mesmo discurso é utilizado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para se manter à distância do escândalo, apesar de as investigações chegarem a amigos e parentes próximos do líder petista.

domingo, 13 de dezembro de 2015

O muro


Nas Entrelinhas: Luiz Carlos Azedo
Correio Braziliense - 13/12/2015

 Para onde se olhe — a política externa, a nossa economia, as políticas sociais, o Congresso —, está evidente o colapso do presidencialismo de coalizão encabeçado pelo PT

No início dos anos 1980, a esquerda brasileira não havia se dado conta ainda de que o mundo que habitava deste a II Guerra Mundial, pautado pela “guerra fria”, havia deixado de ser bipolar. De certa forma, a onda neoliberal liderada pelo presidente norte-americano Ronald Reagan, republicano, e pela primeira-ministra britânica Margaret Tatcher, conservadora, reforçava essa ideia. No Brasil, a luta contra o regime militar também corroborava essa visão, na qual o governo do presidente João Batista Figueiredo e o imperialismo ianque pareciam ser uma coisa só.

Não eram. A Guerra das Malvinas (1982), na qual os argentinos acreditavam que Washington, no mínimo, mediaria um acordo com a Inglaterra, já havia lançado por terra toda a doutrina de segurança nacional dos militares do continente. O aliado principal havia rasgado a Doutrina Monroe (1823) ao apoiar militarmente os ingleses. Os militares brasileiros começavam, então, uma retirada em ordem do poder, sob forte pressão das forças democráticas, que por muito pouco não conseguiram aprovar no Congresso a convocação de eleições diretas (1984).

A derrota do regime militar ocorreu, porém, no colégio eleitoral que havia sido montado para institucionalizá-lo, com a eleição de Tancredo Neves (1985), mas que faleceu antes de tomar posse. Quis o destino que a transição à democracia fosse comandada por seu vice, o presidente José Sarney. Quando as eleições diretas finalmente ocorreram, em 1989, o mundo passava por uma mudança que deixou a esquerda ainda mais perplexa: o colapso repentino da União Soviética e do chamado “socialismo real” no Leste europeu.

Nessa época, o líder soviético Mikhail Gorbachev tentava salvar o comunismo de seu esgotamento, com a perestroika (reestruturação) e a glasnost (transparência), uma tentativa frustrada de modernização e democratização do socialismo. O velho modelo leninista de economia estatal planificada e partido único havia sido ultrapassado pelas economias e democracias do Ocidente. Além disso, havia perdido legitimidade com as intervenções soviéticas na Hungria (1956), na Tchecoslováquia (1968) e na Polônia (1980).

Gorbachev tinha consciência da gravidade da crise do socialismo e acreditava que poderia salvá-lo do colapso, mas já era muito tarde. Recusou-se, porém, a reprimir as manifestações populares que resultaram na queda do Muro de Berlim, na unificação da Alemanha e no colapso dos regimes comunistas da Polônia, Hungria, Romênia, Bulgária e Iugoslávia.

Esse efeito dominó provocou uma reação conservadora. Na China, foi o massacre da Praça Celestial (1989); na URSS, o sequestro de Gorbachev, mas o golpe militar fracassou porque o povo se rebelou sob a liderança de Boris Yeltsin. De agosto a dezembro de 1991, o regime soviético deixou de existir sem que fosse dado um tiro.

O golpismo

Assim como uma parcela da esquerda acreditou que o golpe militar de 1964 teria sido derrotado se houvesse uma reação armada do governo João Goulart — bastaria bombardear as tropas do general Mourão Filho —, muitos ainda acreditam que o socialismo no Leste europeu sobreviveria se os comunistas soviéticos tivessem agido como seus colegas chineses.

Parte da esquerda brasileira, que se vangloria de ter recorrido à luta armada contra o regime militar, acredita que todos os meios são válidos para conquistar e manter o poder, como fizeram os comunistas russos na insurreição de 1917 e na posterior guerra civil, o que, aliás, acontece até hoje em Cuba. Um dos aspectos dessa concepção é a forma como se aparelha as instituições políticas e as organizações da sociedade civil, sem falar no que está sendo revelado pela Operação Lava-Jato.

Não precisamos olhar para os nossos vizinhos da Argentina e da Venezuela, essa concepção se fortalece entre nós em meio à crise atual. Para onde se olhe — a política externa, a nossa economia, as políticas sociais, o Congresso —, está evidente o colapso do presidencialismo de coalizão encabeçado pelo PT. Uma das maneiras de resolver a crise, já que o atual governo não é capaz de fazê-lo, é recorrer ao impeachment da presidente Dilma. Esse é o grande debate em curso na sociedade, em meio às crises ética, política, econômica e, agora, social. Quem deve decidir é o parlamento.

Trata-se de um mecanismo constitucional, já utilizado com êxito na deposição do ex-presidente Fernando Collor de Mello (1992). O problema é que a esquerda no poder considera esse recurso golpista e está disposta a tudo para não permitir que seja utilizado. Para isso, utiliza a força do Estado contra a oposição e a sociedade, pressiona o Legislativo e o Judiciário. Na verdade, corremos o risco de bloquear a democracia brasileira e impedir qualquer mudança.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

Dança com lobos

Nas Entrelinhas: Luiz Carlos Azedo
Correio Braziliense - 10/12/2014
 
 O impeachment somente poderá apontar uma saída positiva para a crise se for reconhecido como um “rito de passagem” pela sociedade, no qual todos se sintam como parte
 
 Ritos de passagem são objeto de estudo da antropologia, principalmente para o estudo das religiões. Batizados, casamentos, funerais, são exemplos triviais desse tipo de celebração, que, em geral, marca a transição de um estado para outro na vida de indivíduos ou comunidades, do mito egípcio de Osíris ao Ifá do nosso candomblé. Um dos estudiosos dos ritos primitivos das tribos africanas, Victor Turner, na década de 1960, desenvolveu o conceito de “comunita”, no qual os participantes do rito adquirem uma segunda identidade, a “persona”.
 
Psicólogos também se utilizam do conceito de “persona” para explicar certas atitudes e comportamentos, “uma espécie de máscara, projetada por um lado, para fazer uma impressão definitiva sobre os outros, e por outro, dissimular a verdadeira natureza do indivíduo” (Carl Gustav Jung), que pode se referir a um status social, às questões de gênero ou mesmo ao exercício de determinada profissão. A bagunça na política brasileira é tamanha que é o caso de recorrer a esses conceitos antropológicos para explicar certas situações. É que os políticos vivem da própria imagem e tudo fazem para construí-la, mas isso não depende somente deles, mas do papel que lhes é atribuído pela sociedade. No momento, a política brasileira tem quatro grandes atores em cena, cada qual interpretando um papel em causa própria:
 
A presidente Dilma Rousseff, cuja popularidade despencou em razão da crise econômica, procura manter-se distante dos escândalos de corrupção envolvendo seu governo, seu partido e, mais recentemente, seu líder no Senado, Delcídio do Amaral (PT-MS), que negocia delação premiada com o Ministério Público Federal. Mas sucumbe diante da crise ética, política e econômica sem precedentes, que pode resultar no seu afastamento. Agarra-se com unhas e dentes à imagem de mulher imaculada para se manter no cargo, porém, pode ser enquadrada em crime de responsabilidade pelo Congresso por causa das “pedaladas fiscais” e outros atos administrativos considerados ilegais.
 
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, cuja imagem está ameaçada pela lama da Operação Lava Jato, tenta organizar uma campanha para manter Dilma no cargo, mas, estranhamente, orientou a cúpula e a bancada do PT na Câmara a detonar o acordo que havia sido feito pelo Palácio do Planalto com o presidente da Casa, Eduardo Cunha, para barrar o impeachment. Sente-se ameaçado pela quebra dos sigilos bancário e fiscal de seu filho Luís Cláudio Lula da Silva e da empresa dele, a LFT Marketing Esportivo, assim como o do ex-ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República Gilberto Carvalho, um de seus mais próximos e leais colaboradores.
 
O vice-presidente Michel Temer, que sempre foi um estranho no ninho no Palácio do Planalto, tornou-se uma alternativa de poder coma a abertura do processo de impeachment. Procura manter uma imagem de esfinge, que nada tem de egípcia. Já deixou claro que está pronto para assumir o poder se o processo contra Dilma no Congresso levá-la ao afastamento. Escanteado por Dilma na última reforma ministerial, acaba de retomar o controle da bancada do PMDB da Câmara. Articulou com Cunha a destituição do jovem líder Leonardo Picciani (RJ), que o desafiou publicamente, e pôs no seu lugar um tocaio, Leonardo Quintão (MG), seu aliado. Temer tem um plano contra a crise que recebe crescente apoio dos meios empresariais e da oposição.
 
O presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que usa todo o seu poder para manter-se no cargo, embora esteja sendo processado na Comissão da Ética da Câmara por quebra de decoro parlamentar: mentiu ao dizer na CPI da Petrobras que não era dono de contas na Suíça, o que depois foi confirmado pelas autoridades daquele país. Cunha deu a partida ao processo de impeachment da presidente Dilma proposto pela oposição, com base no pedido assinado pelos juristas Miguel Reale Júnior, Hélio Bicudo e Janaína Paschoal. Foi uma retaliação ao fato de a bancada do PT decidir votar contra a sua cassação, implodindo o acordo que havia negociado com Palácio do Planalto. Como não conta com os votos de oposição, é um político marcado para ser cassado por seus pares, mas ainda tem força para obstruir a própria cassação.

Ruptura
 
Os quatro protagonistas fazem parte da coalizão que governa país, a (des)aliança PT-PMDB, o que embaralha as cartas, pois a oposição, representada pelo PSDB, DEM, PPS e Solidariedade não têm força para decidir o destino de Dilma Rousseff sem o PMDB e outros partidos da base governista. O colapso de coalizão presidencial, a partir da implosão do seu sistema de financiamento pela Operação Lava Jato, inviabiliza qualquer solução que tente restabelecer o status quo político anterior, além do fato de que alguns de seus principais integrantes estão envolvidos no escândalo da Petrobras. Eis o xis da questão.
 
Não há saída para a crise tríplice sem uma ruptura política com esse esquema de poder, que pode se dar de duas maneiras: pela via eleitoral, em 2018, ou por meio do impeachment, que abreviaria a sangria política e a bancarrota econômica. No momento, porém, o debate do impeachment no Congresso é uma espécie de dança com lobos, um rito selvagem, que deixa a sociedade estupefata. O impeachment somente poderá apontar uma saída positiva para a crise se for reconhecido como um “rito de passagem” pela sociedade, no qual todos se sintam como parte da “comunita”. É aí que entra em cena o mais novo participante dessa dança com lobos, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luiz Edson Fachin.
 
Ao sustar a instalação da comissão especial eleita pela oposição para apreciar a admissibilidade do processo de impeachment e anunciar que pretende propor ao plenário do STF um rito completo para o processo de impeachment, com base na Constituição e na lei que regulamenta o dispositivo, de 1950, Fachin pretende ditar as regras do jogo. “Disso resultará um procedimento que permitirá que o impeachment seja desenvolvido e processado sem nenhuma arguição de mácula”, disse. Desde que não usurpe atribuições do Congresso, e arraste o STF para o centro de uma crise política que já paralisa o Executivo e o Legislativo, Fachin pode acabar com os casuísmos de Eduardo Cunha (PMDB) na condução dos trabalhos da Câmara, que têm objetivo de truncar o seu próprio processo de cassação no Conselho de Ética.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

O governo líquido

Nas Entrelinhas: Luiz Carlos Azedo
Correio Braziliense - 09/12/2015

O Palácio do Planalto avaliou mal as próprias forças e acreditou que poderia atropelar a oposição. A derrota na eleição da comissão especial, em votação secreta, por 279 a 199, foi acachapante

Às vésperas de completar o primeiro ano de mandato, o governo Dilma Rousseff está passando ao “estado líquido” em razão da forma como as crises política, econômica e ética se retroalimentam, agora agravadas pelo início do processo de impeachment da presidente da República. Assim como o governo vira suco, é incrível como o poder da presidente Dilma Rousseff está se volatilizando, isto é, passa ao “estado gasoso”.

A confusão de ontem na Câmara dos Deputados, na eleição da comissão especial que vai examinar o pedido de seu impeachment, ilustra bem a incapacidade de o Palácio do Planalto gerenciar a crise política, a única na qual o governo poderia encontrar uma saída negociada com as principais forças políticas para enfrentar a crise econômica, se tivesse apetência pra isso. O trio que comanda a tropa anti-impeachment na Câmara — o líder do governo, José Guimarães (PT-CE), do PT, Sibá Machado (AC), e do PMDB, Leonardo Picciani (RJ) — sofreu uma derrota inacreditável.

Havia um ambiente adverso, mas o Palácio do Planalto avaliou mal as próprias forças e acreditou que poderia atropelar a oposição. A derrota na eleição da comissão especial, em votação secreta, por 272 a 199, com duas abstenções, foi acachapante. A margem de segurança da presidente é de apenas 28 votos para evitar que o processo do impeachment seja aprovado, o que exige 342 votos. Não participaram da votação 41 deputados.

Os questionamentos jurídicos dos governistas para reverter no Supremo Tribunal Federal (STF) a formação de uma comissão majoritariamente governista, mesmo que tenham algum sucesso (o ministro Edson Fachin suspendeu a instalação da comissão; o plenário da Corte julgará o caso na próxima quarta-feira), serão apenas protelatórios. Reza o regimento da Câmara que a comissão especial seja eleita em plenário; a maioria é oposicionista. Não há como impedir que seja constituída respeitando a correlação de forças na Casa. É assim que funciona a democracia, e não na base de depredação de cabines e urnas de votação.

Pela sucessão de erros de condução da política, parece que o maior adversário de Dilma Rousseff é ela própria, e não os líderes de oposição, o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ) e, agora, seu mais novo desafeto público: o vice-presidente Michel Temer. O fracasso de Dilma na política não é assimétrico em relação à economia. A mudança da meta fiscal de um superavit projetado de R$ 56 bilhões para um deficit de R$ 120 bilhões em 2015 fala mais alto do que toda a retórica governista.

O governo não fez o ajuste fiscal nem pretende fazê-lo, ainda mais porque as forças que a presidente da República arregimenta para se manter do poder não o desejam. O resultado prático é país quebrado, principalmente as prefeituras, no setor público, e as indústrias, no setor privado. Quem paga o pato é a sociedade. Sem controle sobre o processo político, com a economia em depressão, a terceira variável da crise tríplice, a Operação Lava-Jato, é mais incontrolável ainda.

Ontem, o ex-líder do governo no Senado Delcídio do Amaral (MS), suspenso por 60 dias do PT, contratou o advogado Antônio Augusto Figueiredo Basto, o mesmo do doleiro Alberto Youssef, para negociar a delação premiada com o Ministério Público Federal. Preso preventivamente, o senador eleito pelo Mato Grosso do Sul foi denunciado pelo ex-diretor Internacional da Petrobras Nestor Cerveró, aquele que a presidente Dilma Rousseff acusa de tê-la enrolado na compra fraudulenta da refinaria enferrujada de Pasadena, no Texas (EUA), quando ela era presidente do Conselho de Administração da Petrobras. Delcídio é o novo homem-bomba.
Fim das utopias

Mas voltemos ao “governo líquido”. O sociólogo judeu-polonês Zygmunt Bauman, uma lenda viva, cunhou — sem trocadilho — o conceito de “sociedade líquida” para explicar o que está acontecendo no século XXI, em contraposição à sociedade industrial moderna, das duas guerras mundiais e da guerra fria, estruturada em classes sociais bem definidas, que deu origem aos partidos políticos modernos.

Segundo ele, a primeira diferença da sociedade sólida para a líquida é o fim das utopias. Não se pensa a longo prazo, os desejos já não se traduzem em projetos coletivos e no trabalho continuado, mirando as futuras gerações. A reflexão sobre a sociedade e o progresso como bem compartilhado deram lugar ao consumismo, ao prazer individual, ao imediatismo na sociedade, ao sabor do mercado. Na metáfora do caçador e do jardineiro que ilustra a teoria da “sociedade líquida”, o caçador da era pré-moderna está de volta, tomou o lugar do jardineiro, que caracterizaria o comportamento do indivíduo da sociedade do século XX.

Até que ponto essa realidade interfere na crise política que estamos vivendo? De certa forma, o governo Dilma está sendo tragado por uma “sociedade líquida”, quando nada porque o PT virou um partido de caçadores e não de jardineiros. O velho discurso de esquerda, exumado para barrar o impeachment, ainda motiva os mais empedernidos militantes, que estão perdidos na floresta, mas é incapaz de convencer a sociedade. Mas essa já é outra discussão.

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Muita sede ao pote

Nas Entrelinhas: Luiz Carlos Azedo
Correio Braziliense - 08/122015

A defesa do mandato de Dilma Rousseff, teoricamente, é muito mais fácil do que a aprovação do impeachment, porque depende de apenas 171 votos dos 513 deputados da Câmara. Mas essa conta é muito volátil

 
O Palácio do Planalto está se aproveitando da forma intempestiva como o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), deu a partida ao processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, em resposta ao apoio do PT ao seu pedido de cassação. Com a oposição pega de surpresa e a opinião pública ainda perplexa com o início do processo de impeachment, o PT foi para a ofensiva, mas a presidente da República está indo com muita sede ao pote.

Ontem, chegou a defender a suspensão do recesso do Congresso para que o impeachment seja votado. A defesa do mandato de Dilma Rousseff, teoricamente, é muito mais fácil do que a aprovação do impeachment, porque depende de apenas 171 votos dos 513 deputados da Câmara. Mas essa conta é muito volátil. Uma presidente da República que não é capaz de reunir esse apoio não teria mesmo condições políticas de liderar o país para enfrentar a crise, como já disse, com outras palavras, o ministro Ricardo Berzoini, secretário de Governo.

Depois de uma reunião na noite de domingo com os ministros da Casa Civil, Jaques Wagner, e da Justiça, José Eduardo Cardozo, além de Berzoini, Dilma resolveu passar o trator na oposição e fazer uma maioria sólida na comissão especial que vai apreciar a admissibilidade do pedido de impeachment. Os líderes do governo na Câmara, José Guimarães (PT-CE), do PT, Sibá Machado (AC), e do PMDB, Leonardo Picciani (RJ), cumpriram à risca a orientação de só indicar deputados governistas dos partidos aliados ao governo. Deu errado.

Picciani indicou deputados fechados com Planalto, usando como moeda de troca o Ministério da Aviação Civil. Mas não combinou com os demais integrantes da bancada, que sequer reuniu. O resultado foi uma rebelião comandada pelos deputados ligados ao presidente da Câmara, Eduardo Cunha, e ao vice-presidente, Michel Temer, que praticamente desmontou a comissão especial, que já estava com 58 dos 65 integrantes designados.

O presidente do Solidariedade, Paulo Pereira da Silva (SP), articulou com os partidos de oposição e a ala dissidente do PMDB a formação de uma chapa alternativa, que vai disputar em plenário a formação da comissão. “Vamos retirar as nossas indicações da chapa oficial. Toda a oposição vai tirar”, afirmou Paulinho. Para disputar a eleição da comissão, regimentalmente, a chapa precisa ter, no mínimo, 33 nomes dos 65 lugares na comissão. Por causa da confusão, a eleição foi adiada de ontem à noite para hoje.

O Palácio do Planalto também tenta interferir em outros partidos. Pressiona a Rede para indicar o ex-petista Alexandre Molon (RJ) e não Elisiane Gama (MA), ex-PPS, para a comissão especial do impeachment. Também pressiona a cúpula do PSB para mudar a nominada de indicados até agora, pois os deputados Fernando Coelho Filho (PE), Danilo Forte (CE) e Tadeu Alencar (PE) são oposicionistas. A quarta vaga está sendo disputada por Luíza Erundina (SP), aliada de Dilma. Há confusão ainda nas bancadas do PTB, do PROS, do PSC e do PP.

Dissimulação
Do outro lado da Praça dos Três Poderes, o ex-ministro da Aviação Civil Eliseu Padilha, depois de consumar sua saída do governo, disse que o PMDB, partido do qual faz parte, está “dividido” sobre o impeachment da presidente Dilma Rousseff. “Não posso ter posição diferente da do presidente do partido. O PMDB é um partido que está dividido sobre a questão. Temos que ver qual o segmento majoritário. O presidente Michel está fazendo essa aferição”, complementou.

A deriva de Padilha para a oposição não significa, porém, um desembarque imediato do PMDB do governo, nem mesmo do ministro do Turismo, Henrique Eduardo Alves, que é muito ligado a Temer. Como tudo o que acontece no PMDB, uma ala defende o governo de forma “incondicional”; uma segunda é “mais ou menos neutra”; e a terceira “faz oposição”.

Há muito despiste: “Quem conhece o presidente Michel Temer e quem me conhece sabe que conspiração não cabe. O presidente Michel Temer é um democrata vocacionado à observância da lei”, disse Padilha. Mas articulações do PMDB com a oposição vão de vento em popa. Ontem, o senador José Serra (PSDB-SP) defendeu publicamente o afastamento de Dilma, enquanto Temer se reunia com o governador Geraldo Alckmin.

Para resistir, a presidente Dilma Rousseff mobiliza juristas ligados ao PT em sua defesa, pois acredita na possibilidade de barrar o impeachment no Supremo Tribunal Federal (STF). Já o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva organiza os sindicatos e demais movimentos sociais para ir às ruas em defesa do governo. Corre contra o relógio, porque a oposição das redes sociais já tem uma manifestação marcada para 13 de dezembro, domingo.
 
Mas a grande trapalhada do Palácio do Planalto foi vazar uma carta do vice-presidente Michel Temer  a Dilma Rousseff, com um rosário de queixas acerca do tratamento que recebera da presidente da República ao longo de cinco anos de convivência. O objetivo da carta era introduzir uma conversa pessoal, mas acabou divulgada para causar constrangimento. Foi tiro pela culatra, pois caiu como uma bomba no Congresso e pode representar o rompimento definitivo de Temer.