Nas Entrelinhas: Luiz Carlos Azedo
Correio Braziliense - 10/08/2014
O senso comum é de que o pleito será decidido em razão do tempo de
televisão e do volume de recursos financeiros de cada candidato, não em
consequência do debate sobre os reais problemas da sociedade
As ideias da filósofa judia alemã
Hannah Arendt, autora de Raízes do Totalitarismo e A Condição Humana,
falecida em dezembro de 1975, permanecem atuais, embora pouco conhecidas
do grande público. Hannah era uma democrata radical, com muitos
adversários à direita e à esquerda, que provocou grande celeuma nos
círculos intelectuais de Nova York, onde havia se radicado após fugir do
nazismo, devido a um ensaio político — meio jornalístico, meio
filosófico —, no qual narra o julgamento do criminoso nazista Adolf
Eichmann.
Série de cinco artigos publicados na revista The New Yorker,
Eichmann em Jerusalém, como se intitula a obra, é a base do roteiro do
filme Hannah Arendt, que muitos tiveram a oportunidade de assistir no
Brasil. Dirigido por Margarethe Von Trotta, com Barbara Sukowa no papel
principal, a produção alemã de 2012 narra o julgamento midiático do
criminoso nazista, que fora sequestrado por um comando israelense em
Buenos Aires e levado para Israel.
Em vez de um monstro sanguinário, como todos esperavam, Eichmann era um
funcionário como outro qualquer, um burocrata cumpridor do seu dever.
Por meio desse personagem, a filosofa descreve a “banalidade do mal”, ou
seja, o poder do Estado de igualar o exercício da violência homicida ao
mero cumprimento da atividade burocrática. Além de mostrar como a
burocratização do serviço público pode se traduzir na capacidade
destrutiva do Estado, Hannah causou polêmica porque pôs o dedo na ferida
da colaboração de líderes judeus com o nazismo, o que revoltou a
comunidade judaica, principalmente nos Estados Unidos.
Pensar e agir
Parece uma digressão sobre o que se
passa na Faixa de Gaza e em Jerusalém, mas não é esse o caso. A memória
de Hannah Arendt vem a calhar por causa da política no Brasil. Uma
grande apatia tomou conta do povo em relação às eleições, em razão da
ojeriza à política e aos políticos. Talvez essa dicotomia entre o pensar
a política e o agir politicamente seja um dos assuntos preferidos da
filósofa, que se diferenciou de outros colegas por considerar a
atividade política uma ação inerente à condição humana e não vê-la com
hostilidade.
Essa tensão entre a filosofia — pensar é o diálogo do eu consigo mesmo —
e a política existe desde a parábola da caverna da República de Platão:
o homem se liberta dos grilhões que o prendiam à escuridão e decide
sair à luz do dia, que ainda o cega. Já não enxerga na escuridão. Esse é
um ato isolado, solitário; nesse momento, ninguém o acompanha.
Para Hannah, a condição humana não vem da existência biológica (“labor”)
ou do trabalho (“homo faber”), mas do pensar e agir politicamente. Essa
é a única atividade humana que se exerce diretamente, sem a mediação
das coisas. É a oportunidade de começar algo novo e afirmar a própria
identidade, sem a qual a maioria, em qualquer sociedade, cede terreno à
tirania.
Apatia e voto
A menos de dois meses das eleições, a
campanha eleitoral está gelada nas ruas, ao contrário do que acontece
nas redes sociais, onde o ativismo militante não tem limites, apesar de
minoritário. É um vale tudo que assusta qualquer cidadão não-alinhado
aos partidos políticos que protagonizam a disputa e que parecem
estimular a abulia coletiva.
O senso comum é de que o pleito será decidido em razão do tempo de
televisão e do volume de recursos financeiros de cada candidato, não em
consequência do debate sobre os reais problemas da sociedade, como
recomenda a prática democrática. Parece que a política voltou a ser um
monopólio de quem exerce o poder e dos partidos políticos.
Pelo raciocínio, a presidente Dilma Rousseff seria reeleita já no
primeiro turno, pois teria a oportunidade de mostrar as realizações de
sua administração — como se isso não tivesse sido feito por meio da
maciça propaganda governamental, antes e durante a Copa do Mundo. Assim,
a alienação e o desconhecimento seriam as razões da desaprovação de seu
governo e da grande rejeição à própria presidente da República, que
concorre à reeleição.
Esse ponto de vista se baseia na guerra midiática de versões, não no que
de fato acontece na vida social. As pesquisas apontam um gradativo
avanço da oposição, que deverá levar a eleição presidencial para o
segundo turno, provavelmente entre Dilma e Aécio Neves (PSDB) ou,
eventualmente, Eduardo Campos (PSB).
Tudo indica que teremos uma disputa dramática. Há 25 anos, a cada dois
anos, o brasileiro escolheu seus governantes segundo suas reais
prioridades. O voto secreto e direto é uma nobre forma de agir
politicamente; geralmente, é antecedido de muita discussão e reflexões
sobre a vida real, principalmente em âmbito familiar. Na eleição, os
cidadãos podem pensar e agir para enfrentar seus problemas e, dessa
forma, exercer plenamente a sua condição humana, como diria a filósofa
Hannah Arendt.
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