sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Aos padeiros de São Paulo

 Uma campanha salarial que mudou a qualidade dos pães que os paulistanos consomem e garantiu muitos direitos de consumidor

Tenho uma velha amizade com os padeiros de São Paulo, desde uma campanha salarial do final da década de 1980, quando os portugueses donos das padarias paulistas resolveram endurecer o jogo com a categoria e o presidente do Sindicato dos Padeiros, meu querido camarada Francisco Pereira de Souza Filho, o Chiquinho, me pediu que o ajudasse a traçar uma estratégia de luta para o sindicato. Eu era secretário de organização do PCB em São Paulo e, como ele, membro do Comitê Central do antigo PCB.

Os "portugas" não queriam repor as perdas com a inflação, em pleno governo Sarney, ou seja, pretendiam impor um arrocho salarial de fato. Das nossas conversas surgiu um plano de ação cujo foco era melhorar as condições de trabalho dos padeiros e a qualidade dos pães e confeitos oferecidos à população, denunciando as péssimas condições sanitárias das padarias. Foi feito um levantamento detalhado das irregularidades: produtos vencidos, presença de insetos e pequenos animais nas instalações, falta de higiene e limpeza etc. O chefe da Vigiliância Sanitária da Prefeitura de São Paulo era o médico Airamir Padilha, hoje na Anvisa, que recebeu as informações e promoveu uma blitz sanitária nas padarias de grande impacto na opinião pública. Nunca mais a relação entre os padeiros e dos donos de padarias de São Paulo foi a mesma.

Aquela campanha salarial gerou, inclusive, uma série de leis e normas municipais que hoje são adotadas em todas padarias, algumas até óbvias, mas que não existiam. Por exemplo: é proibido pegar o pão com a mão para oferecer ao freguês. Vale destacar que muitas das padarias de São Paulo são pontos de encontro de vizinhança, como os botequins cariocas, nos quais as pessoas almoçam, jantam, fazem lanches e batem papo tomando cerveja.

Foi por conta dessa velha amizade que o Sindicato dos Padeiros de São Paulo, recentemente, me convidou para fazer uma palestra no seminário de formação e planejamento da entidade, na colônia de férias de Caraguatatuba, no litoral paulista. Apesar de bate-volta cansativo (cheguei na noite de véspera e viajei de volta para Brasília sem sequer almoçar, para me apresentar ao trabalho no Correio Braziliense), foi com muita alegria que participei do evento e reencontrei velhos amigos. Eles degravaram a minha intervenção, que segue abaixo:

Crise de identidade e renovação do movimento sindical

Nós estamos vivendo uma crise de identidade do sujeito pós-moderno. O sujeito sociológico da sociedade industrial, que era estruturada em classes bem definidas, já não existe mais, assim como não existe o sujeito iluminista do Século das Luzes, do “penso, logo existo”. Isso tem muito a ver com a crise dos Estados nacionais, com os novos conflitos étnicos, além de mudanças de caráter social, como a “revolução de gêneros” surgida após o movimento feminista.

Além disso, apesar dos problemas de hegemonia dos EUA na economia mundial e da crise da economia globalizada, da força do “americanismo” no padrão de comportamento do mundo Ocidental e das economias mais modernas – mesmo no Oriente, como no Japão, Coréia e até na China --, essa crise se expressa no mundo inteiro, sob as mais diversas formas. 

A globalização e as mudanças  da sociedade pós-industrial provocaram uma crise de identidade na juventude em que, vamos dizer assim, o padrão de reprodução de comportamento está sendo substituído e diversificado, por uma série de razões. Por exemplo, Eric Hosbbawm, em uma entrevista publicada no livro chamado “Tempos Interessantes”, se não estou enganado, falava da importância da família na reprodução do movimento socialista e do movimento operário, porque nos momentos de descenso e de repressão, as ideias socialistas eram transmitidas no âmbito familiar e passavam de uma geração para outra. 

Aqui deve ter gente que viveu isso, filho de pai e de mãe socialista ou comunista. Com a desestruturação da família unicelular patriarcal, que era o padrão predominante da família e que hoje não é mais, isso perdeu a importância. Esse exemplo é só para termos uma ideia de como esta crise de identidade se manifesta de várias formas.

Outra coisa: o movimento feminista mudou a relação homem-mulher, os movimentos de gênero também estão tendo uma influência enorme. Agora mesmo tem uma discussão aí com relação à política nacional de educação porque a bancada evangélica efetuou uma emenda que suprimiu do plano nacional de educação um item que garantia a igualdade de orientação sexual na escola. 

Então, as pessoas buscam sua identidade não é mais na relação patrão-empregado ou nas relações de propriedade; elas buscam suas identidades de outras formas, de outras maneiras: dentro de casa, na relação marido e mulher, na escola, no local de trabalho, enfim os interesses são os mais variados. Aquela ideia do sujeito sociológico que havia antes está morrendo.

É ai que surgem os fenômenos inteiramente novos. Por exemplo: o que é o “rolezinho”, senão um movimento que busca uma afirmação de identidade construída na periferia e no confinamento. Os jovens pobres querem ter acesso à cultura e ao lazer e ficam confinados à periferia.Quando saem, são discriminados e barrados no baile. 

Como é que esses movimentos podem se expressar? Esse é um ponto de interrogação. Então, o que nós estamos vivendo é o seguinte: as estruturas tradicionais da organização da sociedade, das chamadas classes subalternas, não estão sendo capazes de incorporar e traduzir esses interesses e essas pessoas e estão surgindo movimentos à margem dessas instituições e dessas organizações. São organizados em rede, tem muito acesso à informação e se propagam com rapidez, a partir de interesses individuais e afinidades específicas.


Além disso, há outro elemento importante que precisa ser considerado, principalmente, no movimento sindical, que é certo transformismo que nós observamos em partidos tradicionalmente ligados ao movimento operário, especialmente o caso do PT. A cooptação de entidades sindicais, que abdicaram da sua autonomia em relação ao poder político e ao governo, está fazendo com que, onde existe vida no movimento sindical, muitas vezes, isso se expresse de forma completamente marginal às entidades sindicais e às lideranças tradicionais. 

Isso esta acontecendo com muita frequência, mesmo em antigos redutos do PT e da CUT, como por exemplo, o movimento dos professores. No movimento dos professores do Rio de Janeiro, por exemplo, a liderança do movimento foi completamente ultrapassada pela militância; na greve dos garis do Rio de Janeiro, a liderança do sindicato foi ultrapassada pela militância. Nós estamos tendo uma greve dos professores em São Paulo, na capital, que provavelmente deve estar repetindo esse fenômeno. Você consegue “aparelhar” o sindicato, aí quando você convoca uma assembleia e a massa comparece, não se tem como aparelhar a assembleia. Foi o que aconteceu também nas oibras das hidrelétricas e dos estádios, onde as lideranças oficiais foram atropeladas pelos grevistas. Então, digamos assim, são situações que estão surgindo e que o movimento sindical tem que parar para pensar e refletir sobre elas.

O meu tempo esta terminando e eu queria destacar duas questões que eu acho que são muito importantes do ponto de vista da agenda do movimento sindical. A primeira questão é que a pauta do movimento sindical não pode se restringir às reivindicações tradicionais ligadas à relação trabalho / capital. Ela tem que abarcar esses interesses que estão sem representação na sociedade e que estão gerando movimentos que são completamente autônomos a tudo que existe aí, e que inclusive são pautas da tradição do movimento sindical. Alguém aqui tem dúvidas de que as políticas habitacionais, o transporte público, a política de saúde pública tem a ver com o movimento sindical ou com a história sindical? Hoje essas pautas estão completamente abandonadas ou marginalizadas. São assuntos ou temas que estão presentes nestes conflitos, que a gente vê toda hora nos telejornais. 

Além disso, o jovem trabalhador é mais qualificado, tem mais ambições e não se apega ao trabalho nem à própria profissão como as gerações anteriores, que se reproduziam de pai pra filho. Além disso, não tem um modo de vida e um padrão de consumo, digamos, "proletário". Ele quer ter aceso a tudo aquilo que um jovem de classe média tem. Isso gera frustração e revolta, que vai se expressar de alguma forma, às vezes até inconsequente.


A segunda questão é o problema da violência. Eu não acredito que esses movimentos que se traduzem com atos de vandalismo, com agressões, etc., que eles possam vir a representar um salto de qualidade no movimento popular e na representação política das pessoas que lutam por uma vida melhor. Quem tem cultura para organizar a luta, para liderar a luta, para direcionar a luta é o movimento sindical, que tem uma experiência vivida e que passa de geração para geração. Então, esse apartamento entre o movimento sindical e o que esta acontecendo, vamos dizer assim, contribui para que esses movimentos acabem num beco sem saída. Ai as pessoas dizem assim, não, mas isso é o novo, é a nova autonomia, surgem muitas teorias com relação a isso, mas eu acho que estes movimentos, na verdade, são um subproduto do atraso e da omissão dos movimentos sociais organizados, inclusive do movimento sindical.  A gente não deve confundir o que é novidade com o que é verdadeiramente novo. Vou encerrar porque meu tempo acabou . Agradeço a paciência de vocês. Muito obrigado!




2 comentários:

Anônimo disse...

É uma pista excelente para se entender o que está se passando, caro amigo Azedo. Na Europa os "Bonzos" sindicais, perderam de 90 até bem pouco tempo, o contato com os anseios de seus trabalhadores. Estes trabalhadores passaram a se organizar e se manifestar "expontaneamente" por outros meios que as greves clássicas e reivindicam "outras coisas", que nem passariam pela cabeça de um líder sindicalista clássico. O trabalhador joga sua energia, por exemplo, na organização do bairro, por uma melhor escola, ou ma boa praça em que possa ter seu tempo de lazer melhor aproveitado, ou parte para a porrada, para apoiar a ocupação de um prédio, que antigos companheiros, hoje precários, ocupam. São companheiros que tem uma visão de mundo mais global e menos presa ao mundo do trabalho.
Hoje sindicatos como o de maquinistas de trem da Alemanha, utilizam em suas greves, métodos aprendidos dos movimentos "expontâneos", falam de conforto para passageiros, e mais tempo para o lazer dos empregados.
Voltam ao método "anarquista" que você utilizou para a "greve" dos padeiros de São Paulo. Reivindicavam além de melhores condições para o "seu"! trabalho, melhores condições para os seus "frequeses". Ações simpáticas e que contavam com o apoio popular pois todos viam que podiam ganhar com as reivindicações do padeiro.
Me fez lembra as "Padarias do Povo", nomes que os anarquistas portugueses davam aos seus núcleos de "agitoprop" durante a ditadura de Salazar;
Mesmo sendo muito sacaneados pelo stalinista Cunhal, seus métodos foram utilizados pelos comunistas depois de 1974.
Me recordo da famosa greve dos garçons de cervejarias. Durou uma semana, e contou com o apoio irrestrito dos beberrões da cidade. Todo dia tinha uma cervejaria de plantão. Eram verdadeiras assembléias populares que aconteciam nas cervejarias de plantão, com toda a imprensa nacional e internacional presente. Afinal jornalistas não são de ferro; Mesmo os imprensistas conservadores precisavam beber...
Desde 83 que isto não acontece aqui. Na greve de professores, patrocinada pelo MR8 contra Brizola, os professores pararam meses, e a população nos odiou, pois seus filhos ficavam sem merenda. Fui voto vencido na assembléia do SEPE aparelhado, pois na escola que lecionava em Brás de Pina, nós professores nos revezamos em um plantão todos os dias na cozinha. Aproveitávamos para dar aulas populares a todos que apareciam, até a turma da pesada. Visitei esta escola, quando voltei ao Brasil, e é uma das escolas que malandro até hoje respeita.
Os garis fizeram questão de conversar com a população em 2013. Fizeram também questão de manter escorrerem o lixo dos hospitais. Quando PMs dando água pros garis durante suas manifestações, pensei, a mãe do comunistas, anarquia, tá nas ruas de de novos...

Anônimo disse...

É uma pista excelente para se entender o que está se passando, caro amigo Azedo. Na Europa os "Bonzos" sindicais, perderam de 90 até bem pouco tempo, o contato com os anseios de seus trabalhadores. Estes trabalhadores passaram a se organizar e se manifestar "expontaneamente" por outros meios que as greves clássicas e reivindicam "outras coisas", que nem passariam pela cabeça de um líder sindicalista clássico. O trabalhador joga sua energia, por exemplo, na organização do bairro, por uma melhor escola, ou ma boa praça em que possa ter seu tempo de lazer melhor aproveitado, ou parte para a porrada, para apoiar a ocupação de um prédio, que antigos companheiros, hoje precários, ocupam. São companheiros que tem uma visão de mundo mais global e menos presa ao mundo do trabalho.
Hoje sindicatos como o de maquinistas de trem da Alemanha, utilizam em suas greves, métodos aprendidos dos movimentos "expontâneos", falam de conforto para passageiros, e mais tempo para o lazer dos empregados.
Voltam ao método "anarquista" que você utilizou para a "greve" dos padeiros de São Paulo. Reivindicavam além de melhores condições para o "seu"! trabalho, melhores condições para os seus "frequeses". Ações simpáticas e que contavam com o apoio popular pois todos viam que podiam ganhar com as reivindicações do padeiro.
Me fez lembra as "Padarias do Povo", nomes que os anarquistas portugueses davam aos seus núcleos de "agitoprop" durante a ditadura de Salazar;
Mesmo sendo muito sacaneados pelo stalinista Cunhal, seus métodos foram utilizados pelos comunistas depois de 1974.
Me recordo da famosa greve dos garçons de cervejarias. Durou uma semana, e contou com o apoio irrestrito dos beberrões da cidade. Todo dia tinha uma cervejaria de plantão. Eram verdadeiras assembléias populares que aconteciam nas cervejarias de plantão, com toda a imprensa nacional e internacional presente. Afinal jornalistas não são de ferro; Mesmo os imprensistas conservadores precisavam beber...
Desde 83 que isto não acontece aqui. Na greve de professores, patrocinada pelo MR8 contra Brizola, os professores pararam meses, e a população nos odiou, pois seus filhos ficavam sem merenda. Fui voto vencido na assembléia do SEPE aparelhado, pois na escola que lecionava em Brás de Pina, nós professores nos revezamos em um plantão todos os dias na cozinha. Aproveitávamos para dar aulas populares a todos que apareciam, até a turma da pesada. Visitei esta escola, quando voltei ao Brasil, e é uma das escolas que malandro até hoje respeita.
Os garis fizeram questão de conversar com a população em 2013. Fizeram também questão de manter escorrerem o lixo dos hospitais. Quando PMs dando água pros garis durante suas manifestações, pensei, a mãe do comunistas, a anarquia, tá nas ruas de de novos... E salve o dia da República!