Os padrões de análise e de comportamento da nossa política não conseguem explicar o rolezinho. Provocam, porém, narrativas à esquerda e à direita que vão da tentativa de capitalizar as manifestações dos jovens de baixa renda nos shopping centers, como se fossem uma forma de contestação das desigualdades sociais, ao apelo à ordem e à consequente ação repressiva, por encarar o fenômeno como mera delinquência, ou seja, um caso de polícia. Nem uma coisa nem outra. Essa garotada das periferias e dos subúrbios resolveu zoar nos modernos templos do consumo por outros motivos, que precisam ser melhor estudados.
O antropólogo angloamericano Victor Turner (1920-1983) talvez nos ajude a entender o que se passa. Antes de se radicar nos Estados Unidos, o escocês fez seu trabalho de campo na aldeia dos Ndembu da Zâmbia, entre 1950 e 1954. Resultaram dois clássicos da antropologia social: O processo ritual (Vozes) e Floresta de símbolos (Eduff). Seus estudos nos confins da África servem de referência para a análise de certos fenômenos da sociedade pós-moderna, na qual categorias, identidades e símbolos da sociedade industrial foram desconstruídos. As "performances", por exemplo.
Nas atividades artísticas e culturais, nas disputas políticas, nas relações de trabalho, nas redes sociais e na vida mundana, ninguém se estabelece sem uma boa performance na "sociedade do espetáculo". Até que ponto nossos jovens de baixa renda, ao se organizarem em rede e se reunirem em massa nos shopping centers, não estão tentando apenas traduzir para o restante da sociedade que eles existem em seu próprio mundo, com lideranças e estilo de vida próprios? Que não querem só a comida que a renda lhes garante, mas também diversão e arte, como na música dos Titãs: "A gente quer inteiro/E não pela metade..."
Na sociedade pré-estabelecida pare esse jovens, há ritos para tudo, da festa de 15 anos ao casamento, da entrega de diplomas à posse de políticos. Na visão de Turner, porém, certos ritos de passagem, ao se realizarem, criam uma nova hierarquia entre seus participantes. Hipoteticamente, por exemplo, um preto velho, num passe de umbanda, pode soprar a fumaça do charuto na cara da madame sem perder o emprego de motorista; o mesmo ocorre num desfile de escola de samba, quando a empregada se veste da rainha e leva a patroa para desfilar como simples figurante. A propósito, tanto o samba quanto a umbanda foram muito perseguidos.
Mobilidade e status
A verdade é que mobilidade social por meio da educação e da renda, por si só, não garante um novo status para os indivíduos. O discurso oficial sobre a nova classe média diz o contrário, mas entre o marketing do Palácio do Planalto e a vida como ela é há uma grande distância. Essa mudança de status também exige reconhecimento, pois sua aceitação pela sociedade não é tão simples assim. De certa forma, o rolezinho é a teatralização e a dramatização de algo que está acontecendo com 50 milhões de jovens entre 15 e 29 anos, dos quais 10 milhões não estudam nem trabalham. O acesso dos jovens de mais baixa renda, principalmente os que trabalham, a certos bens de consumo obedece a uma vontade e uma simbologia que não estão no "manual cultural" de quem habitualmente frequenta os shopping centers. Isso nada tem ver com luta política.
Ritos levantam contradições e divergências, costumam fugir à coerência e ao senso comum. Ao mesmo tempo, são elementos de conscientização da vida social. Aquilo que a sociedade é e deve ser (a ordem vigente e sua manutenção) se legitima naquilo que ela não deve ser (as contradições expostas pelos rituais). O rolezinho não deixa de ser um rito de passagem, revela formas e características da nossa estrutura social que estavam confinadas territorialmente, em verdadeiros guetos culturais. Marca, reivindica e legitima a transição de um estado social para outro. Se não é aceito completamente, deve ser compreendido culturalmente, pois revela certas barreiras do status quo.
Como todo rito de passagem, é melhor que seja bizarro (aquilo que não faz sentido) do que violento, que seria a negação expressa fisicamente ao convívio democrático. Talvez essa negação seja mais comum entre os jovens nem-nem da classe média tradicional, com seus "pegas" de automóveis e brigas em boates. Sem falar nos blacks blocs, mas aí já entraríamos em outra seara.
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