terça-feira, 30 de setembro de 2014
Um maluco no Eixo
Que o cara é doido, não resta dúvida, mas as reivindicações dele não estavam fora do contexto do debate eleitoral
Como se não bastasse a reta final emocionante do primeiro turno das eleições, um maluco resolve chamar a atenção e fazer um refém no alto de um dos hotéis de Brasília, justamente aquele no qual o ex-petista José Dirceu pretendia trabalhar durante o regime semiaberto de sua condenação como um dos chefes do mensalão. Pelas características do episódio, em nenhum momento houve realmente a intenção de matar o refém, um dedicado funcionário do hotel, pois tanto os explosivos quanto o revólver do sequestrador eram falsos.
Durante oito horas, o “terrorista” à brasileira — ainda bem que não era um fanático da Al-Qaeda — assustou, e muito. Independentemente do desfecho sem maiores consequências, o agricultor Jac de Souza dos Santos, que já foi candidato a vereador do PP e secretário de Juventude da prefeitura de uma pequena cidade de Tocantins, deve ser punido de forma exemplar.
Quando tudo parecia dentro do script de uma reta final eletrizante da campanha eleitoral, com Dilma Rousseff (PT) liderando a disputa e Marina Silva (PSB) no maior sufoco, pois está com o candidato do PSDB, Aécio Neves, na sua cola, a ameaça de atentado terrorista em pleno Eixo Monumental de Brasília roubou a cena. Seria esse um eco tresloucado e individual da violência e dos protestos de junho do ano passado? Talvez sim, talvez não.
Que o cara é doido, não resta dúvida, mas as reivindicações dele não estavam completamente fora do contexto do debate eleitoral. Ele ameaçou detonar o refém e explodir com ele se a Lei da Ficha Limpa não for cumprida, reivindicou a aprovação de uma reforma política, exigiu a expulsão do ex-terrorista italiano Cesare Battisti e fez críticas pesadas à presidente Dilma Rousseff e ao governador de Brasília, Agnelo Queiroz (PT).
Quem ganha eleitoralmente com o episódio, no qual a polícia de Brasília agiu com cautela e firmeza, evitando uma tragédia? Ninguém. Provavelmente, a única consequência do episódio foi desviar momentaneamente a atenção popular das eleições. Do ponto de vista da disputa entre governo e oposição, isso não terá maior significado.
Sobe e desce
No primeiro levantamento da semana, a pesquisa CND/MDA aponta Dilma e Aécio em ascensão, com Marina em queda. A petista cresceu 4,4 pontos percentuais em relação à pesquisa anterior, estando com 40,4% das intenções de voto, contra 25,2% de Marina Silva, que caiu 2,2 pontos. Aécio subiu 2,2 pontos, para 19,8%. Na simulação de segundo turno, Dilma seria reeleita com 47,7%, contra 38,7% de Marina, vantagem de nove pontos — na pesquisa anterior, havia empate técnico. A avaliação positiva do governo Dilma cresceu de 37,4% para 41%, enquanto a negativa diminuiu, de 25,1% para 23,5%
Mais seis pesquisas eleitorais sobre intenção de voto estão previstas para a última semana de campanha. Nesta terça, são esperadas pesquisas Datafolha, Ibope e Sensus. Duas outras Datafolha e uma Sensus podem sair a partir de quarta. A reta final da campanha registra euforia no comando da campanha de Dilma e muito otimismo também entre os tucanos. Na campanha de Marina, todas as esperanças estão voltadas para o segundo turno; não há muito o que fazer, a não ser evitar uma queda mais abrupta.
Os candidatos têm apenas mais dois programas de tevê, salvo ser a Justiça aprovar algum direito de resposta. Com a disputa tão acirrada entre Marina e Aécio pela vaga de segundo turno, todas as atenções estarão voltadas para o debate da TV Globo de quinta-feira.
Pressão no leilão
A Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) realiza hoje o leilão de internet 4G. Com exceção da Oi, da Nextel e da Sercontel, todas as demais grandes empresas do setor — Claro, Vivo e TIM —, e também a Algar, se inscreveram. Analistas avaliam que o setor será inevitavelmente descapitalizado, pois a utilização da internet 4G pela tevê digital somente ocorrerá em 2019. O leilão está sendo realizado por pressão do secretário do Tesouro, Arno Augustin, que pretende fazer caixa para fechar o superavit fiscal deste ano. Como no setor elétrico, as consequências vêm depois. O governo espera uma arrecadação mínima de R$ 7,7 bilhões.
segunda-feira, 29 de setembro de 2014
Cinco dificuldades de escrever sobre a verdade ( um velho texto que circulava mimeografado nos tempos da ditadura)
"Aquele que não conhece a verdade é simplesmente um ignorante, mas aquele que a conhece e diz que é mentira, este é um criminoso."
Bertolt Brecht |
1.
A
coragem para escrever a verdade
Parece
óbvio que quem quer que escreva não pode suprimir ou ocultar a verdade ou
escrever algo
deliberadamente
falso. O escritor não deve se submeter aos poderosos, nem enganar os fracos.
Naturalmente, é muito difícil não se submeter aos poderosos, e é
altamente
vantajoso
enganar os fracos.
Desagradar
os proprietários significa transformar-se em um dos despossuídos. Renunciar ao
pagamento pelo trabalho pode ser o equivalente a desistir do trabalho. Rejeitar
a fama, quando essa é oferecida pelas classes dominantes, pode significar
rejeitá-la para sempre. Isso exige coragem.
Geralmente,
em tempos de extrema opressão, fala-se muito sobre assuntos sofisticados e
elevados. Tais tempos exigem coragem para escrever sobre questões baixas e
ignóbeis, como a comida e a moradia dos trabalhadores.
Exigem
coragem quando todos os outros estão vociferando sobre a importância vital do
sacrifício. Quando se derramam todos os tipos de honra sobre os camponeses, é
necessário coragem para falar de máquinas e forragem barata que poderiam aliviar
seu honrado trabalho. Quando cada canal de comunicação afirma ruidosamente que
um homem sem conhecimento ou educação é melhor que aquele que estudou, é preciso
coragem para perguntar: melhor para quem?
Quando
se fala sobre raças superiores ou inferiores, exige coragem perguntar se não é a
fome, a ignorância e a violência que produzem deformidades. E também exige
coragem dizer a verdade sobre nós mesmos, sobre os vencidos.
Muitos
dos perseguidos perdem a capacidade de reconhecer seus próprios erros. Para
eles, a perseguição em si é a maior injustiça. Os perseguidores são maus
simplesmente porque perseguem; os perseguidos sofrem por causa de sua bondade.
Mas essa bondade foi agredida, derrotada, suprimida; era, desse modo, uma
bondade fraca, indefensável, não confiável. Por isso, não pensemos que a bondade
precisa ser fraca, como a chuva precisa ser molhada. Exige coragem dizer que os
bons foram derrotados não porque eram bons, mas porque eram
fracos.
Naturalmente,
na batalha contra a mentira, a verdade deve ser escrita, e essa verdade não pode
ser uma afirmação genérica, ambígua e sofisticada. A inverdade é feita
precisamente desse caráter genérico, ambíguo, sofisticado.
Quando
se diz “ele disse a verdade”, isso significa que antes alguns ou muitos, ou no
mínimo uma pessoa, falaram algo diferente da verdade – uma mentira ou afirmação
vaga. Ele, porém, falou a verdade, algo prático, factual, inegável, preciso.
Não
é preciso muita coragem para reclamar em um lamento genérico da maldade do mundo
e do triunfo da barbárie, ou gritar energicamente que a vitória do espírito
humano está garantida, onde as reclamações são ainda permitidas.
Há
muitos que fingem que o canhão está apontado para eles próprios, quando na
verdade são alvo de meros binóculos de ópera! Eles proclamam suas demandas vagas
para um mundo de amigos e pessoas inofensivas.
Exigem
uma justiça em geral, pela qual nunca fizeram nada; pedem por uma liberdade
genérica para obter uma parcela de algo do qual já se aproveitam há muito tempo.
Acham que a verdade é apenas o que soa bem. Se a verdade fosse algo estatístico,
seco ou factual, algo difícil de encontrar, que exigisse estudo, não
reconheceriam-na como verdade. Eles possuem apenas a aparência de quem diz a
verdade.
O
seu problema é: eles ignoram a verdade.
2.
A
inteligência para reconhecer a verdade
Como
é difícil escrever a verdade, uma vez que a mesma está suprimida em toda a
parte, para a maioria das pessoas trata-se de questão de for o íntimo escrever
ou não a verdade. Acreditam que somente é necessária a coragem.
Esquecem
do segundo obstáculo: a dificuldade de encontrar a verdade. De forma alguma
pode-se dizer que é fácil encontrá-la. Primeiro de tudo, encontramos problemas
para determinar qual verdade deve ser dita. Assim, por exemplo, aos olhos de
todo o mundo, grandes nações civilizadas, uma após a outra, caem na barbárie.
Ademais,
todos sabem que a guerra interna travada com a utilização dos mais assustadores
métodos pode, a qualquer momento, converter-se em uma guerra internacional, com
o potencial de transformar nosso continente em um monte de ruínas. Essa, sem
dúvida, é uma verdade, mas existem outras. Assim, por exemplo, não deixa de ser
verdade que as cadeiras têm assentos ou que a chuva cai de cima para
baixo.
Muitos
poetas escrevem verdades desse tipo. Eles parecem pintores que pintam naturezas
morta nas paredes de um navio que está afundando.
Nossa
primeira dificuldade não os incomoda e suas consciências estão tranquilas. Não
perturbados por aqueles que estão no poder, tampouco pelos gritos dos
desesperados, seguem pintando. A irracionalidade de sua conduta produz neles um
“profundo” pessimismo, que vendem a bons preços; recompensa que seria mais
adequada àqueles que observam esses mestres e suas vendas. Ao mesmo tempo, não é
fácil se dar conta que suas verdades são simples como aquelas sobre cadeiras ou
chuva; elas costumam parecer verdades sobre coisas importantes. Pois é da
natureza da criação artística conferir importância a qualquer objeto. Mas, sob
um exame mais rigoroso, é possível enxergar o que eles meramente dizem: uma
cadeira é uma cadeira; e ninguém pode impedir a chuva de cair para baixo. Eles
são incapazes de descobrir as verdades que devem ser escritas.
Por
outro lado, existem alguns que lidam somente com as mais urgentes tarefas, que
abraçam a pobreza e não temem os poderosos e que, miseravelmente, não podem
encontrar a verdade. A esses falta conhecimento. Eles estão cheios de antigas
superstições, de óbvios preconceitos, que em dias passados eram frequentemente
apresentados em belas
palavras. O mundo é complicado demais para eles. Não conhecem
os fatos; não percebem relações. Além da convicção, é necessário conhecimento,
que pode ser adquirido, e método, que pode ser aprendido.
O
que é necessário a todos os escritores desta era de perplexidade e mudanças
relâmpago é conhecer o materialismo dialético, a economia e a história. Esses
conhecimentos podem ser adquiridos em livros e compêndios, se a dedicação
necessária for aplicada.
Muitas
verdades podem ser descobertas de modo mais simples. Ou ao menos parte da
verdade ou fatos que levam à descoberta da verdade.
Método
é bom em toda pesquisa, mas também é possível fazer descobertas sem usar método
algum, mesmo sem pesquisa. Mas, por meio de um procedimento trivial, é quase
impossível encontrar uma
verdade
que possibilite aos homens agir.
Pessoas
que simplesmente descrevem pequenos fatos não são capazes de entender as coisas
deste mundo, de modo que são facilmente controláveis.
Só
a verdade leva ao entendimento, e nada mais. Tais pessoas não conseguem superar
os desafios para que possam escrever a verdade. Se uma pessoa tem coragem para
escrever a verdade e é capaz de reconhecê-la, restam ainda três
dificuldades.
3.
A
habilidade de manipular a verdade como arma
A
verdade deve sempre ser dita com atenção aos resultados produzidos por ela na
esfera da ação. Como exemplo de verdade que não leva a resultado algum, mesmo
que errado, podemos citar a visão geralmente aceita em determinados países de
que más condições sociais são resultado da barbárie.
Segundo
essa visão, o fascismo é uma onda de barbárie que estourou sobre alguns países
com a força elemental de um fenômeno natural. De acordo com essa opinião, o
fascismo é um novo, terceiro poder, além (e acima) do capitalismo e do
socialismo; não apenas o movimento socialista, mas também o capitalismo teriam
sobrevivido sem a intervenção do fascismo. Naturalmente, essa é uma afirmação
fascista; concordar com ela é render-se ao fascismo.
O
fascismo é uma fase histórica do capitalismo; assim, é algo ao mesmo tempo novo
e velho. Em países fascistas, o capitalismo continua a existir, mas somente na
forma do fascismo; e o fascismo somente pode ser combatido como o próprio
capitalismo, como a mais nua, crua, vergonhosa, opressiva e perigosa forma de
capitalismo. Mas como pode alguém dizer a verdade sobre o fascismo, a menos que
considere criticar o capitalismo que o produz? Quais serão os resultados
práticos dessa verdade? Aqueles que são contrários ao fascismo sem ser contra o
capitalismo, os que lastimam a barbárie como resultado da barbárie, são como as
pessoas que querem comer vitela sem sacrificar a bezerra.
Eles
querem comer a carne, mas odeiam ver sangue. Ficam satisfeitos se o açougueiro
lava as mãos antes de pesar a carne. Eles não são contra as relações de
propriedade que produzem a barbárie; apenas são contra a barbárie em si.
Elevam
a voz contra ela, e o fazem em países onde existem perniciosas relações de
propriedade, mas onde os açougueiros lavam as mãos antes de pesar a
carne.
Acusações
contra medidas bárbaras podem surtir efeito quando aqueles que as escutam pensam
que tais medidas estão fora de questão em seus próprios países. As relações de
propriedade são mantidas de forma menos violenta em alguns países. Neles, a
democracia ainda serve para alcançar resultados, como a garantia da propriedade
privada dos meios de produção, que em outros países somente são atingidos por
meio da violência.
O
monopólio privado das fábricas, minas e terras cria condições bárbaras em toda a
parte, embora nem sempre evidentes. A barbárie chama atenção quando o monopólio
da propriedade somente pode ser protegido por meio da violência.
Alguns
países que ainda não consideram necessário defender seus monopólios bárbaros por
meio da dispensa de garantias formais do Estado Constitucional e de amenidades
como a arte, a filosofia e a literatura são particularmente interessados em
ouvir visitantes que cometem abusos, ao negar aquelas amenidades em seus países. Eles
escutam com alegria, porque a partir do que ouvem esperam
obter
vantagens em guerras futuras.
Diremos
nós que alguém reconheceu a verdade quando, por exemplo, exige aos gritos um
ataque impiedoso contra a Alemanha “porque aquele país é a verdadeira pátria do
mal de nossos dias, a filial do Inferno, o lar do anticristo”? Deveríamos dizer
que esses são os tolos e perigosos. Pois o que se deve concluir a partir dessa
irracionalidade é que como o gás venenoso e as bombas não escolhem os culpados,
a Alemanha deveria ser exterminada – todo o país e seu
povo.
Aquele
que realmente não sabe a verdade se expressa em termos sofisticados, gerais e
imprecisos. Ele grita sobre “os” alemães, queixa-se do mal em geral, romanceando
as coisas de tal maneira que quem quer que o ouça não consegue decidir o que
fazer. Decidirá ele não mais ser alemão? Desaparecerá o inferno se ele próprio
for bom?
A
conversa mole sobre a barbárie, cuja fonte é a barbárie, é também uma verdade
desse tipo. Ela é combatida através da cultura. Ela é dita em termos gerais; não
serve de guia para a ação e é, na verdade, destinada a
ninguém.
Tais
descrições vagas apontam apenas para poucas conexões na cadeia das causas. Seu
obscurantismo oculta as forças reais que geram desastres. Se pudesse ser jogada
luz sobre o assunto, rapidamente ficaria claro que os desastres são causados por
certos homens. Pois vivemos em um mundo onde o destino do homem é determinado
pelos homens.
O
fascismo não é um desastre natural que pode ser entendido simplesmente em termos
de “natureza humana”. Mas, mesmo quando estamos lidando com catástrofes
naturais, existem formas de retratá-las que são dignas dos seres humanos, porque
apelam ao espírito de luta dos homens.
Após
o grande terremoto que destruiu Yokohama, muitas revistas americanas publicaram
fotografias mostrando montanhas de ruínas. Na legenda de uma dessas fotografias
lia-se: “Steeel stood" (o aço ficou de pé).
Apesar
de só ver ruínas à primeira vista, o olho distinguia, depois de ler a legenda,
que alguns arranha-céus permaneceram de pé.
Entre
as muitas descrições sobre um terremoto, aquelas feitas por engenheiros civis
sobre movimentações do solo, forças de estresse, calor etc. são as de maior
importância, pois levarão a construções que resistirão aos terremotos.
Se
alguém deseja descrever o fascismo e a guerra, grandes desastres que não são
catástrofes naturais, deve fazê-lo em termos da verdade prática. Precisa mostrar
que esses desastres são lançados pelas classes dominantes para controlar um
vasto número de trabalhadores que não possuem os meios de
produção.
Se
alguém deseja escrever com sucesso a verdade sobre as condições malignas deve
escrever de modo que as causas evitáveis possam ser identificadas. Se as causas
evitáveis podem ser identificadas, as condições malignas podem ser
combatidas.
4.
O discernimento para selecionar aqueles em cujas mãos a verdade será
eficiente
A
comercialização por séculos de publicações críticas e descritivas e o fato de
que o escritor foi liberado de se preocupar com o destino de seus escritos
levaram-no a uma falsa impressão. Ele acha que seu editor ou intermediário
distribui o que ele escreveu para todos.
O
escritor pensa: Eu falei, e aqueles que desejam ouvir me ouvirão. Na verdade,
ele falou e aqueles que podem pagar o ouvirão.
Muito
já foi dito sobre isso, apesar de ainda ser pouco. Eu simplesmente quero
enfatizar que “escrever para alguém” foi transformado simplesmente em
“escrever”. Mas a verdade não pode ser simplesmente escrita; ela tem que ser
escrita para alguém; alguém que possa fazer algo com ela. O processo de
reconhecer a verdade é o mesmo para escritores e leitores.
Para
dizer boas coisas, é preciso ouvir bem e ouvir coisas boas. A verdade precisa
ser dita deliberadamente e ouvida deliberadamente.
E
para nós escritores é importante a quem falamos a verdade e quem nos fala a
verdade.
Nós
temos que falar a verdade sobre condições terríveis àqueles cujas condições são
piores, e precisamos também conhecer a verdade deles. Precisamos nos dirigir não
somente àqueles que já sustentam certas posições, mas às pessoas que, devido a
sua situação, deveriam sustentar essas
posições.
E o público está continuamente mudando. Mesmo os carrascos podem ser abordados
se o pagamento pelos enforcamentos não estão em dia ou o trabalho fica muito
perigoso.
Os
camponeses da Bavária eram contra qualquer revolução, mas quando a guerra se
prolongou demais e os filhos que voltavam para casa não encontravam
oportunidades em suas fazendas, tornou-se possível conquistá-los para a
revolução.
É
importante para o escritor encontrar o tom da verdade. Geralmente, ouvimos um
tom muito suave e melancólico, um tom de pessoas que não machucariam uma mosca.
Ouvindo-os, os miseráveis ficam mais miseráveis.
Aqueles
que assim usam a verdade podem não ser inimigos, mas certamente não são aliados.
A verdade é beligerante; ela ataca não somente a falsidade, mas particularmente
pessoas que espalham a falsidade.
5.
A
engenhosidade para espalhar a verdade entre
muitos
Muitas
pessoas, orgulhosas por possuírem a coragem necessária para escrever sobre a
verdade, felizes por terem conseguido encontrá-la, cansadas talvez pelo trabalho
necessário para colocá-la em uma forma viável e impacientes para que ela seja
agarrada por aqueles cujos interesses estão apoiando, consideram supérfluo
aplicar qualquer engenhosidade especial ao espalhar a verdade. Por esse motivo,
elas frequentemente sacrificam toda a eficácia de seu trabalho.
Historicamente,
a engenhosidade tem sido utilizada para espalhar a verdade, sempre que essa é
suprimida ou ocultada.
Confúcio
adulterou uma tradicional lenda histórica, alterando algumas palavras. Onde se
lia “O governante de Hun mandou matar o filósofo Wan porque ele disse isso e
aquilo,” Confúcio substituiu “matar” por “assassinar”. Quando se dizia que o
tirano tal “morreu assassinado”, ele substituiu por “foi executado”. Desse modo,
Confúcio abriu caminho para uma nova interpretação da
história.
Em
nossos tempos, qualquer um que diga “população” no lugar de “povo” ou “raça”, e
“propriedade privada” no lugar de “terra”, está, por esse simples ato, retirando
seu apoio a grandes mentiras. Ele está tirando dessas palavras suas implicações
místicas e degradadas. A palavra povo (Volk) implica certa unidade e certos
interesses comuns; assim ela deveria ser utilizada quando se fala a respeito de
povos, porque só nesses casos será concebível algo como uma comunidade de
interesses.
A
população de um território pode ter muitos interesses diferentes, até mesmo
opostos – e essa é uma verdade geralmente suprimida. De modo semelhante, quem
fala da terra e descreve vividamente seu cheiro e cor está apoiando as mentiras
dos poderosos. Pois a fertilidade do solo não é a questão, nem o amor dos homens
pela terra, nem mesmo as técnicas que utilizam para trabalhá-la; o que é de
importância capital é o preço dos cereais e o preço do trabalho. Aqueles que
extraem lucros do solo não são os mesmos que extraem os grãos dele, e o cheiro
de terra sulcada pelo arado é desconhecido na Bolsa de Valores. A última, aliás,
tem um cheiro completamente diferente. “Propriedade privada ‘ é a expressão
correta; ela oferece menos oportunidade de engano.
Onde
existe opressão, a palavra obediência deveria ser empregada ao invés de
disciplina, pois disciplina pode ser auto-imposta e, desse modo, tem algo de
nobre em seu caráter que falta à obediência. E uma palavra melhor que honra é
dignidade humana; a última tende a manter o indivíduo em foco.
Todos
sabemos muito bem que tipo de pilantras se metem a defender a honra de um povo.
E como
eles
distribuem honras aos famintos que os sustentam. A engenhosidade de Confúcio
ainda é válida hoje.
Thomas
More em sua Utopia
descreveu
um país onde as condições justas de vida prevaleciam. Era um país muito
diferente da Inglaterra em que viveu, mas lembrava muito a Inglaterra, exceto
pelas
condições
de vida.
Lênin
queria descrever a exploração e opressão na Ilha
Sakalina,
mas ele precisava tomar cuidado com a polícia
Czarista.
No lugar da Rússia ele colocou o Japão, e no lugar
da
Sakalina, a Coreia.
Os
métodos da burguesia japonesa
lembravam
a todos os seus leitores os da burguesia russa na
Sakalina,
mas o panfleto não foi censurado pois a Rússia era
hostil
ao Japão. Há muitas coisas que não podem ser ditas na
Alemanha
sobre a Alemanha, mas podem ser ditas sobre a
Áustria.
Há
muitas formas engenhosas com as quais se pode trapacear um Estado fascista.
Voltaire combateu a doutrina de milagres da Igreja escrevendo um poema galante
sobre a virgem de Orléans. Ele descreveu os milagres que sem dúvida ocorreram
para que Joana D’Arc permanecesse virgem no meio de um exército de homens, de
uma corte de aristocratas e de um grupo de monges. Com a elegância de seu
estilo, e descrevendo aventuras eróticas que caracterizavam a vida luxuriosa da
elite, ele lançou descrédito sobre uma religião que fornecia os meios para viver
uma vida irresponsável. Ele até tornou possível, de forma ilegal, que seus
trabalhos chegassem àqueles a quem eram destinados.
Seus
leitores poderosos promoveram ou toleraram a distribuição de seus escritos.
Dessa forma, eles retiravam apoio da polícia que defendia seus privilégios.
Outro exemplo: o grande Lucrécio diz expressamente que um dos maiores estímulos
para espalhar o ateísmo de Epicuro foi a beleza de seus
versos.
É
fato que o alto nível literário de uma certa afirmação
pode
render proteção a ela. Entretanto, também é comum que
levante
suspeitas. Em tais casos poderá ser necessário
rebaixar
deliberadamente o nível. Isso ocorre, por exemplo,
quando
descrições das más condições são
imperceptivelmente
escondidas na desprezada forma de uma
história
de detetive. Tais descrições justificariam uma história
de
detetive.
O
grande Shakespeare deliberadamente baixou o
nível
de seu trabalho por razões de muito menor importância.
Na
cena em que Coriolano é confrontado por sua mãe e está de partida para sua
cidade natal, Shakespeare deliberadamente torna o discurso dela ao filho muito
fraco. Era inoportuno para Shakespeare que Coriolano fosse impedido, por boas
razões, de completar seu plano. Era necessário que se entregasse ao velho hábito
com uma certa submissão.
Shakespeare
também nos dá um modelo de engenhosidade para espalhar a verdade: é o discurso
de Antonio sobre o corpo de Cesar. Antonio continuamente enfatiza que Brutus é
um homem honrado, mas ele também descreve o acontecido, e a descrição do
acontecido é mais impressionante do que a descrição sobre o executor do
acontecimento. O orador, assim, permite a si próprio ser conquistado pelos
fatos; ele deixa que os fatos falem por si próprios.
Um
poeta egípcio, que viveu há quatro mil anos, empregou método similar. Aquele foi
um tempo de grande luta de classes. A classe que até então governara estava
defendendo-se com dificuldade contra seu grande oponente, a parte da população
que até então servira.
No
poema, um homem sábio aparece na corte do governante e o chama para uma luta
contra o inimigo interno. Ele apresenta uma longa e impressionante descrição das
desordens que foram provocadas pelos levantes das classes inferiores. Essa
descrição era assim:
Então
é assim: os nobres lamentam e os servos se alegram. Cada cidade diz: “Deixe-nos
expulsar os fortes
de nosso meio”. Os escritórios são arrombados e os documentos removidos. Os
escravos estão se tornando senhores.
Então
é assim: o filho de um homem bem nascido não é mais reconhecido. O filho da
patroa torna-se o filho de sua escrava.
Então
é assim: os comerciantes foram presos as suas responsabilidades. Aqueles que nunca
viram o dia partiram para a sua luz.
Então
é assim: As pobres caixas de ébano estão sendo quebradas; a nobre madeira está
sendo cortada para fazer camas.
Vejam,
a capital foi derrubada em uma hora.
Vejam,
os pobres da terra tornaram-se ricos.
Vejam,
aquele que não tinha pão, agora possui celeiro cheio com as posses de outro.
Vejam,
é bom para o homem quando ele pode comer sua comida.
Vejam,
ele que não tinha milho agora possui celeiros; aqueles que aceitaram a
generosidade do milho agora o distribuem.
Vejam,
ele que não tinha bois agora possui rebanhos; ele que não conseguia animais de
carga agora possui rebanhos de gado puro.
Vejam,
aquele que não podia construir barraco para si próprio agora possui quatro
paredes fortes.
Vejam,
os ministros buscam abrigo no celeiro, e aquele que não tinha permissão para
dormir em cima de muros, agora possui cama.
Vejam,
aquele que não podia construir para si próprio uma canoa agora possui navios;
quando o proprietário olhar seus navios, descobrirá que não são mais seus.
Vejam,
aqueles que tinham roupas estão vestidos em trapos, e ele que não teceu nada
para si próprio agora possui o mais fino linho. O homem rico vai com sede para a
cama, e ele que uma vez implorou por restos agora tem uma cerveja forte.
Vejam,
ele que não entendia nada de música agora possui uma harpa; ele para quem
ninguém cantava agora aprecia música.
Vejam,
ele que dormia sozinho por falta de esposa agora tem mulheres; aqueles que
olhavam suas faces na água, agora têm espelhos.
Vejam,
os mais altos do país agora vagam por aí sem emprego. Nada mais é relatado aos
poderosos. Ele que uma vez foi mensageiro agora envia outros com suas mensagens.
Vejam,
cinco homens cujo mestre os enviou. Eles dizem: vá por si próprio; nós chegamos.
É significativo que essa descrição seja de um tipo de desordem que pareça muito
desejável aos oprimidos.
E
ainda assim, a intenção do poeta não é transparente. Ele condena expressamente
essas condições, apesar de condená-las insuficientemente.
Jonathan
Swift, em seu famoso panfleto, sugeriu que a prosperidade da terra poderia ser
restaurada por meio do assassinato dos filhos dos pobres e da venda de sua
carne.
Ele
apresentou cálculos exatos demonstrando as economias que poderiam ser feitas se
as classes dominantes não parassem por nada. Swift fingiu inocência. Ele
defendeu um modo de pensar que ele odiava com intenso ardor e profundidade,
utilizando como tema uma questão que expunha abertamente a crueldade daquele
modo de pensar.
Qualquer
um podia ser mais talentoso que Swift, ou de algum modo mais humano –
especialmente aqueles que não haviam se incomodado previamente em considerar
quais eram as conclusões lógicas a respeito de seus pontos de
vista.
Propaganda
que estimula a reflexão, não importa em que campo, é útil para a causa dos
oprimidos. Esse tipo de propaganda é muito necessária.
Sob
governos que servem à promoção da exploração, qualquer reflexão é considerada
uma coisa baixa, assim como qualquer coisa que sirva àqueles que são oprimidos.
É baixo estar constantemente preocupado em conseguir o suficiente para comer; é
baixo rejeitar honras oferecidas aos defensores de um país, os quais passam
fome; baixo é duvidar do Líder, mesmo quando sua liderança leva à desgraça; é
baixo resistir a realizar um trabalho que não alimenta o trabalhador; baixo é
revoltar-se contra a obrigação de cometer atos irracionais; baixo é estar
indiferente a uma família que não pode ser ajudada por maior preocupação que se
tenha.
Os
famintos são insultados como lobos vorazes que não tem nada a perder; aqueles
que duvidam de seus opressores são acusados de duvidar de sua própria força;
aqueles que exigem pagamento por seu
trabalho
são denunciados como preguiçosos. Sob tais governos, a reflexão em geral é
considerada baixeza e cai em descrédito.
Pensar
não é mais ensinado em
lugar algum. O ato de pensar é perseguido. Contudo, sempre é
possível chamar a atenção para os triunfos do pensamento em alguns campos, sem
medo de punição. São campos em que as ditaduras necessitam de pensamento. Por
exemplo, é possível referir-se aos triunfos do pensamento em campos como o da
ciência e tecnologia militares. Mesmo assuntos como aumento dos estoques de lã
por meio de organização mais eficiente, ou invenção de materiais substitutos,
exigem pensamento.
Adulteração
de comida, treinamento de jovens para a guerra – todas essas coisas exigem
pensamento; e em relação a esses assuntos, o processo de pensamento pode ser
descrito.
Enaltecer
a guerra, o objetivo automático desse tipo de pensamento, pode ser
engenhosamente evitado, e desse modo, o pensamento que surge da questão de como
a guerra é melhor travada pode levar a outra questão: se a guerra faz realmente
sentido. O pensamento pode ser então aplicado a outra questão: como pode uma
guerra sem sentido ser prevenida? Naturalmente, essa pergunta mal pode ser feita
abertamente. Sendo assim, não poderá o pensamento que estimulamos ser utilizado?
Isto é, pode ele ser colocado de modo a levar à ação?
Pode.
Para
que a opressão da parte maior da população pela menor possa continuar em tempos
como os nossos, uma certa atitude é necessária, e essa atitude deve permear
todos os campos. Uma descoberta no campo da biologia, como aquela do inglês
Darwin, poderia, de repente, colocar em
perigo
a exploração.
Apenas
a Igreja esteve alarmada por certo período de tempo; o povo não notou nada de
novo. Em anos recentes, as pesquisas dos físicos nos levaram a consequências no
campo da lógica que poderiam muito bem colocar em risco dogmas que sustentam a
opressão. Hegel, o filósofo do Estado prussiano, que realizou investigações
complexas no campo da lógica, sugeriu a Marx e Lênin, os expoentes clássicos da
revolução proletária, métodos de valor inestimável.
O
desenvolvimento das ciências está interrelacionado, mas é desigual, e o Estado
nunca é capaz de manter seu olho em tudo. A guarda avançada da verdade pode
escolher posições de batalha que estão relativamente pouco vigiadas.
O
que conta é que o tipo correto de pensamento seja ensinado, um tipo de
pensamento que investiga os aspectos transitórios e mutáveis de todas as coisas
e processos.
Governantes
têm forte desagrado por mudanças significativas. Eles prefeririam ver tudo
permanecer o mesmo – por mil anos, se possível. Eles amariam se o Sol e a Lua
ficassem parados. Assim, ninguém mais cresceria faminto, ninguém desejaria seu
jantar. Os governantes que mandam disparar um tiro não querem que o inimigo seja
capaz de atirar; o deles há de ser o último tiro.
Uma
forma de pensamento que privilegia a mudança é uma boa forma para encorajar os
oprimidos.
Outra ideia com a qual os vencedores podem ser confrontados é que, em tudo e em todas
as condições, contradições aparecem e crescem. Tal visão (a dialética, a
doutrina de que todas as coisas fluem e mudam) pode ser estimulada em domínios
que por um tempo escapem da percepção dos poderosos.
Pode
se empregada na biologia ou na química por exemplo. Mas também pode ser indicada
na análise do destino de uma família, e aqui também não deve chamar muita
atenção.
A
noção de que as coisas dependem de fatores que estão constantemente mudando é
uma idéia perigosa
para os ditadores, e essa ideia pode aparecer disfarçada, sem atrair a atenção
da polícia.
Uma
descrição completa de todos os processos e circunstâncias encontradas por um
homem que abre uma tabacaria pode desferir um golpe contra a ditadura. Quem
refletir sobre isso rapidamente
descobrirá
o porquê. Governos que levam as massas à miséria precisam proteger-se contra o
pensamento das massas sobre os governos enquanto elas estão na miséria. Tais
governos falam muito sobre Destino. É o Destino, e não eles, o culpado por tanto
sofrimento. Qualquer um que investigue o assunto é preso antes de chegar à
conclusão e que a culpa é do governo. Mas é possível opor-se a toda essa
irracionalidade sobre Destino, demonstrando que o Destino do Homem é determinado
pelos homens.
Isso
pode ser feito de muitas formas.
Por
exemplo,
pode-se
contar a história de uma fazenda de camponeses –uma fazenda na Islândia,
digamos. A vila inteira está falando
sobre
a maldição que assola a fazenda. A camponesa se
jogou
dentro de um poço. Seu marido enforcou-se. Um dia, o
filho
do camponês casa-se com uma garota, cujo dote é de
vários
acres de boa terra. A maldição parece se desfazer
sobre
a fazenda. A vila divide-se no julgamento sobre a causa
dessa
feliz mudança dos acontecimentos. Alguns atribuem à
disposição
solar do filho do camponês, outros, às novas terras
que
a jovem esposa somou à fazenda, tornando-a suficiente
para
prover uma vida decente.
Mas,
mesmo em um poema que simplesmente
descreve
a paisagem, algo pode ser alcançado, se as coisas
criadas
pelos homens são incorporadas à paisagem.
É
necessário engenhosidade para espalhar a verdade.
Resumo
Atualmente,
a grande verdade é que nosso continente está cedendo espaço à barbárie porque a
propriedade privada dos meios de produção está sendo mantida pela violência.
Reconhecer
simplesmente essa verdade não é suficiente, mas também se ela não for
reconhecida, nenhuma outra verdade relevante poderá ser descoberta.
Qual
a utilidade de escrever algo corajoso sobre a barbárie na qual estamos
ingressando (o que é verdade) se não está claro porque nós estamos entrando
nessa condição?
Precisamos
afirmar que a tortura está sendo utilizada para preservar relações de
propriedade. Para falar a verdade, ao afirmarmos isso, perderemos muitos amigos,
que são contra a tortura apenas porque pensam que as relações de propriedade
podem ser mantidas sem a tortura, o que é uma inverdade.
Precisamos
falar a verdade sobre as condições bárbaras em nosso país a fim de que algo seja
feito para lhes dar um fim – algo, a saber, que mudará as relações de
propriedade. Mais ainda, precisamos dizer essa verdade àqueles que mais sofrem
em decorrência das relações de propriedade existentes e que têm o maior
interesse em sua mudança – os trabalhadores e aqueles a quem podemos induzir a
que sejam seus aliados, porque eles também não têm qualquer controle sobre os
meios de produção, mesmo que participem de seus lucros.
E
devemos agir com muita engenhosidade.
Todas
essas cinco dificuldades devem ser superadas
ao
mesmo tempo, uma vez que não podemos descobrir a
verdade
sobre condições bárbaras sem pensar naqueles que
sofrem
em função delas; não podemos agir sem que nos
livremos
de qualquer traço de covardia; e quando
pretendemos
esclarecer o estado real das coisas para aqueles
que
estão prontos a utilizar essa verdade, devemos também
considerar
a necessidade de oferecer-lhes a verdade de forma
que
seja uma arma em suas mãos, e ao mesmo tempo
devemos
fazer isso de forma tão engenhosa que o inimigo
não
descubra nem impeça nosso oferecimento da verdade.
domingo, 28 de setembro de 2014
Casa grande e senzala (ou a Sinhá e a negrinha)
Nas Entrelinhas: Luiz Carlos Azedo
Correio Braziliense: 28/09/2014
Existe um fator mais antropológico do que político nesta eleição, que é uma das razões de Marina Silva (PSB) resistir como uma das protagonistas da disputa
Um aspecto relevante da disputa eleitoral é o posicionamento do velho patriarcado do Norte e Nordeste, formado a partir do período colonial. Essas oligarquias mantêm incrível capacidade de sobrevivência, graças ao controle das vilas e das pequenas cidades do interior e à grande influência nos negócios regionais que dependem da União. A formação desse patriarcado e seus métodos de controle social foram descritos por Gilberto Freyre em Casa grande e senzala. Sobrevivem até hoje, como está demonstrado nestas eleições.
O velho patriarcado preserva sua secular influência política no Senado e serve de reserva estratégica para as forças do Sudeste e do Sul que estão no poder. Além disso, contamina toda a política com seus métodos fisiológicos e práticas patrimonialistas, a ponto de fazer com que forças mais modernas e até progressistas sejam subjugadas pelo “transformismo” partidário e acabem sucumbindo ao toma lá da cá que domina o nosso parlamento.
A propósito da obra de Gilberto Freyre sobre o patriarcado brasileiro, um parêntese sobre a relação entre a Sinhá e a negrinha: a primeira vive na casa grande e, vez ou outra, visita a senzala; a segunda frequenta a casa grande e volta para dormir na senzala todos os dias. (É piada pronta, mas qualquer semelhança com as candidatas a presidente da República será mera coincidência)
“Desconstrução” e identidade
Agora, falando sério, existe um fator mais antropológico do que político nesta eleição, que é uma das razões de Marina Silva (PSB) resistir como uma das protagonistas da disputa, apesar da enorme desvantagem de sua campanha em termos de tempo de televisão, estruturas de poder, apoios partidários e recursos financeiros. E do processo de “desconstrução” de sua candidatura, que está em pleno curso e é facilitado pela ausência de um estado-maior de campanha experiente em pleitos presidenciais.
Por que, a uma semana do pleito, a candidata do PSB não sucumbiu à polarização Dilma Rousseff (PT) versus Aécio Neves (PSDB), o que ainda pode acontecer no decorrer desta semana? Por causa dos segmentos negros, pardos e mulatos dos grandes centros urbanos sem representação política que com ela se identificam. Uma espécie de voto étnico que se soma a parcelas dos votos ético, evangélico e de protesto que compõem as outras três vertentes eleitorais à margem das estruturas de poder e dos partidos de sua candidatura. Trata-se de um universo político mais virtual do que orgânico.
Vivemos a crise de identidade do chamado “sujeito moderno”, cujo mundo de origem era a sociedade industrial e suas ideologias. A busca de nova identidade na sociedade pós-moderna — cujo sujeito é “desconstruído” — passa por questões novas, que estão muito ao largo do espectro político-partidário e do conceito de nação: a emancipação feminina e as mudanças de gênero, por exemplo.
Essa crise tem também aspectos de caráter regressivo, como o ressurgimento do fundamentalismo religioso e do radicalismo ideológico. Além disso, ocorre outro fenômeno global: a reconstrução da identidade a partir da origem étnica, seja por via do “chauvinismo”, como em algumas regiões em conflito no mundo, inclusive na Europa; ou de forma “traduzida”, que é aquela que predomina no Brasil, principalmente no caso das populações meridionais de origem europeia ou asiática.
Pardos e mulatos, durante muito tempo, porém, buscaram a simples “assimilação”, assim como os descendentes dos povos indígenas nos centros urbanos, em consequência das políticas de “branqueamento” da população (a partir da segunda metade do século 19) e da carga de preconceito e discriminação raciais que herdamos do regime escravocrata, embora mitigados pela miscigenação.
Entretanto, essa identidade étnica nunca deixou de existir e sempre se manifestou de forma vigorosa — mesmo antes dos movimentos de inclusão dos afrodescendentes e de reconhecimento dos direitos indígenas —, por meio da cultura, principalmente da gastronomia, da dança e da música. Na política, porém, nunca teve grande expressão.
É possível que uma parcela da população mestiça, como diria Darcy Ribeiro, esteja se expressando “epidermicamente” pela via eleitoral — à margem das questões partidárias ou programáticas. Seria esse, como hipótese, o motivo da sobrevivência de Marina Silva, uma ex-seringueira negra, aos duros ataques dos adversários. A cada dia, porém, ela perde terreno para Dilma e Aécio.
Correio Braziliense: 28/09/2014
Existe um fator mais antropológico do que político nesta eleição, que é uma das razões de Marina Silva (PSB) resistir como uma das protagonistas da disputa
Um aspecto relevante da disputa eleitoral é o posicionamento do velho patriarcado do Norte e Nordeste, formado a partir do período colonial. Essas oligarquias mantêm incrível capacidade de sobrevivência, graças ao controle das vilas e das pequenas cidades do interior e à grande influência nos negócios regionais que dependem da União. A formação desse patriarcado e seus métodos de controle social foram descritos por Gilberto Freyre em Casa grande e senzala. Sobrevivem até hoje, como está demonstrado nestas eleições.
O velho patriarcado preserva sua secular influência política no Senado e serve de reserva estratégica para as forças do Sudeste e do Sul que estão no poder. Além disso, contamina toda a política com seus métodos fisiológicos e práticas patrimonialistas, a ponto de fazer com que forças mais modernas e até progressistas sejam subjugadas pelo “transformismo” partidário e acabem sucumbindo ao toma lá da cá que domina o nosso parlamento.
A propósito da obra de Gilberto Freyre sobre o patriarcado brasileiro, um parêntese sobre a relação entre a Sinhá e a negrinha: a primeira vive na casa grande e, vez ou outra, visita a senzala; a segunda frequenta a casa grande e volta para dormir na senzala todos os dias. (É piada pronta, mas qualquer semelhança com as candidatas a presidente da República será mera coincidência)
“Desconstrução” e identidade
Agora, falando sério, existe um fator mais antropológico do que político nesta eleição, que é uma das razões de Marina Silva (PSB) resistir como uma das protagonistas da disputa, apesar da enorme desvantagem de sua campanha em termos de tempo de televisão, estruturas de poder, apoios partidários e recursos financeiros. E do processo de “desconstrução” de sua candidatura, que está em pleno curso e é facilitado pela ausência de um estado-maior de campanha experiente em pleitos presidenciais.
Por que, a uma semana do pleito, a candidata do PSB não sucumbiu à polarização Dilma Rousseff (PT) versus Aécio Neves (PSDB), o que ainda pode acontecer no decorrer desta semana? Por causa dos segmentos negros, pardos e mulatos dos grandes centros urbanos sem representação política que com ela se identificam. Uma espécie de voto étnico que se soma a parcelas dos votos ético, evangélico e de protesto que compõem as outras três vertentes eleitorais à margem das estruturas de poder e dos partidos de sua candidatura. Trata-se de um universo político mais virtual do que orgânico.
Vivemos a crise de identidade do chamado “sujeito moderno”, cujo mundo de origem era a sociedade industrial e suas ideologias. A busca de nova identidade na sociedade pós-moderna — cujo sujeito é “desconstruído” — passa por questões novas, que estão muito ao largo do espectro político-partidário e do conceito de nação: a emancipação feminina e as mudanças de gênero, por exemplo.
Essa crise tem também aspectos de caráter regressivo, como o ressurgimento do fundamentalismo religioso e do radicalismo ideológico. Além disso, ocorre outro fenômeno global: a reconstrução da identidade a partir da origem étnica, seja por via do “chauvinismo”, como em algumas regiões em conflito no mundo, inclusive na Europa; ou de forma “traduzida”, que é aquela que predomina no Brasil, principalmente no caso das populações meridionais de origem europeia ou asiática.
Pardos e mulatos, durante muito tempo, porém, buscaram a simples “assimilação”, assim como os descendentes dos povos indígenas nos centros urbanos, em consequência das políticas de “branqueamento” da população (a partir da segunda metade do século 19) e da carga de preconceito e discriminação raciais que herdamos do regime escravocrata, embora mitigados pela miscigenação.
Entretanto, essa identidade étnica nunca deixou de existir e sempre se manifestou de forma vigorosa — mesmo antes dos movimentos de inclusão dos afrodescendentes e de reconhecimento dos direitos indígenas —, por meio da cultura, principalmente da gastronomia, da dança e da música. Na política, porém, nunca teve grande expressão.
É possível que uma parcela da população mestiça, como diria Darcy Ribeiro, esteja se expressando “epidermicamente” pela via eleitoral — à margem das questões partidárias ou programáticas. Seria esse, como hipótese, o motivo da sobrevivência de Marina Silva, uma ex-seringueira negra, aos duros ataques dos adversários. A cada dia, porém, ela perde terreno para Dilma e Aécio.
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