Correio Braziliense - 22/11/2015
Quase todo brasileiro usuário do Sistema Único de Saúde (SUS) passou por experiências desagradáveis no atendimento que vão desde pequenos atrasos até a falta de insumos, leitos e profissionais
Pude observar os seres mais grosseiros no tratamento da população, eu os apelidava mentalmente de monstros do SUS porque quase sempre gritavam e faziam cara feia, a grosseria era como o próprio SUS: gratuita, ampla e ineficaz. Ao longo dos últimos sete anos e meio me formei, fiz duas residências médicas, mestrado, concursos e (muito) mais trabalho e plantões. Continuei achando profissionais excelentes e alguns monstros (em menor número).
Notei também que a enorme maioria dos estudantes de medicina que conheci nos hospitais universitários em que trabalhava era composta de ótimas pessoas, com grande desejo em ajudar e fazer um bom trabalho, respeitosas e capazes. Uma pergunta então surgiu: Como nascem os monstros? Como estudantes entusiasmados e cheios de boas intenções se tornam seres deploráveis?
A dúvida mais cruel me instigou a utilizar as melhores ferramentas que um clínico possui diante de diagnósticos difíceis, a semiologia e a dedução. Notei que os monstros eram em sua maioria médicos ou enfermeiros ou auxiliares de enfermagem (justamente os profissionais com mais contato com o público — a linha de frente); notei que eram tecnicamente piores do que a média; notei que estavam na mesma função há mais tempo; notei que eram desmotivados; e que, quase sempre, estavam sobrecarregados e, em geral, nos piores empregos em hospitais menos atraentes para os profissionais.
Longe de querer defender ou absolver os monstros, talvez eles se criariam sozinhos e certamente têm a maior parcela da culpa, mas o SUS choca os ovos e os fortalece. Um sistema que não oferece bons salários, descanso pós plantão, leitos suficientes, planejamento, e estrutura que estressa diariamente todos que dele dependem, mata muitos e inferniza a vida de quem está todos os dias na linha de frente.
Os profissionais que lidam mais diretamente com o público (enfermeiros, técnicos de enfermagem e médicos) sofrem uma carga de estresse tremenda quando querem fazer seu trabalho benfeito e precisam de ressonância que não têm, um leito que foi desativado ou uma penicilina benzatina (item básico porém raro no olímpico Rio de Janeiro) que não compraram.
A população brasileira segue crescendo, e os leitos no SUS, diminuindo. Há relatos de entre 13 mil e 42 mil leitos a menos nos últimos 10 anos; de acordo com fontes do Ministério da Saúde, são 23 mil leitos a menos no período. Com noções básicas de aritmética, é possível prever o impacto na superlotação das emergências apenas em decorrência destes números.
Quando um paciente ou familiar de paciente, com total justiça, se desespera com as potenciais consequências nefastas dessa situação e, eventualmente, grita, xinga e até agride alguém, agora perdendo a razão (ainda assim compreensivelmente porque o desespero é imenso), quem escuta ou apanha não é o Ilmo. ministro da Saúde nem o secretário estadual mas, sim, quem está na frente do paciente. A casca engrossa e tudo piora
.
Ratificando o que está acima, os monstros são terríveis e não estão aqui sendo defendidos. Mas um sistema que não se planeja adequadamente e está sempre sobrecarregado (como se todo dia fosse epidemia), não premia ou estimula os bons funcionários, nem pune os piores, está fabricando monstros diariamente. Se trabalhar no SUS não for bom, o serviço oferecido também nunca será.
Quase todo brasileiro usuário do Sistema Único de Saúde (SUS) passou por experiências desagradáveis no atendimento que vão desde pequenos atrasos até a falta de insumos, leitos e profissionais. Muitas vezes, vemos relatos de atendimentos grosseiros e desagradáveis por parte dos profissionais de saúde. Quando eu era acadêmico, entre centenas de plantões extracurriculares em diversos hospitais, pude conhecer médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem, dentistas, fisioterapeutas, farmacêuticos, fonoaudiólogos e nutricionistas maravilhosos e péssimos; desde o mais alto nível técnico até os seres mais deploráveis, e descobri que, para o paciente do SUS, a sorte era fundamental para achar um bom profissional.
(*) Professor assistente da Clínica Médica UERJ, médico reumatologista da Hupe/UERJ e membro da Sociedade Brasileira de Reumatologia
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