domingo, 22 de março de 2015

O general e o czar

Nas Entrelinhas: Luiz Carlos Azedo
Correio Brazliense - 22/03/2015

Não é à toa que ninguém mexe na Lei da Anistia para punir os torturadores, nem que os saudosistas da ditadura venham às ruas pedir uma intervenção militar

Foi assim que Napoleão perdeu a guerra. Em 7 de setembro de 1812, o general Mikhail Kutuzov havia estacionado seus 155 mil homens e 640 canhões na aldeia de Borodino, a menos de 150km de Moscou. Às 6h, Napoleão deu início ao ataque com seus 135 mil homens e 587 canhões. O sangue jorrou até depois do pôr-do-sol. Foram cerca de 16 horas de confronto, na maior batalha de um só dia das Guerras Napoleônicas.

 Apesar de a vitória ter sido francesa, Napoleão amargou 58 mil mortos, incluindo 48 marechais. Os russos perderam quase metade de seu exército: 66 mil homens, um deles, o brilhantes general Bagration, mas não se renderam. A demora na chegada do reforço e o massacre do dia anterior fizeram Kutuzov optar por uma retirada em ordem para o leste.

 Foi uma decisão difícil, narrada no romance épico Guerra e Paz por Leon Tolstói, que reproduz o diálogo entre o velho general e Alexandre I, da Rússia. Mesmo sob severas reprimendas do czar, e de boa parte de seu estado-maior, Kutuzov decidiu entregar Moscou sem oferecer combate: “A Rússia é o seu Exército”, disse. Salvá-lo era mais importante do que defender a cidade.

 Napoleão entrou em Moscou e encontrou a cidade vazia. Em meio à indisciplina das tropas francesas e à falta de autoridade dos oficiais perante as suas tropas — que não conseguiam impedir o saque, a pilhagem e a deserção dos soldados —, grandes incêndios provocados por arruaceiros e sabotadores acabaram por transformar a cidade em escombros.

 Enquanto Napoleão, acampado, esperava a rendição do czar, Kutuzov reforçava e reorganizava o seu exército. As tropas francesas estavam enfraquecidas e com moral baixo. As linhas de abastecimento foram cortadas. Após cinco semanas de acampamento, o imperador francês decidiu dar meia volta e iniciar o seu dramático retorno à França. O resto da história, todos sabem.

Os militares
Guerra e Paz, uma espécie de livro de cabeceira nas academias militares, assim como Os Sertões, de Euclides da Cunha, serviu de manual de manobras dos líderes da Coluna Miguel Costa-Prestes, que percorreu 25 mil quilômetros pelo interior do Brasil, em dois anos e meio de revolta dos tenentes. São dois livros seminais, que marcaram a formação da oficialidade militar brasileira.

Desde a Guerra da Independência, os militares tiveram um papel decisivo na consolidação do Estado nacional brasileiro, na preservação de nossa integridade territorial e na defesa da ordem. Mas promoveram três rupturas institucionais: a Proclamação da República, a Revolução de 1930 e o golpe de 1964, no qual destituíram o presidente João Goulart e implantaram uma longa ditadura militar.

A eleição de Tancredo Neves no colégio eleitoral, respaldada por grande mobilização popular, em 1985, foi uma grande vitória das forças democráticas, que voltaram ao poder quando o vice José Sarney assumiu a Presidência. Também foi o desfecho de uma gradual, longa e bem-sucedida retirada em ordem dos militares do poder. Seu marco inicial foi o acordo entre a oposição e o general João Figueiredo para a aprovação da chamada anistia recíproca pelo Congresso.

Não é à toa que ninguém mexe na Lei da Anistia para punir os torturadores, nem que os saudosistas da ditadura venham às ruas pedir uma intervenção militar. As Forças Armadas, principalmente o Exército, continuam sendo instituições de enorme prestígio na sociedade. Por que é bom levar isso em conta? Ora, porque o discurso do PT, partido do governo, para intimidar a oposição, acusando-a de golpista, é um grande equívoco. Nenhuma força política responsável deseja os militares de volta ao poder.

 A retórica petista, porém, traz à cena política quem está quieto no seu canto, comprometido com o respeito à Constituição, ao dar exagerada importância aos grupos de extrema direita que sonham com uma nova ditadura. Qualquer solução política para a crise do governo Dilma Rousseff, com base na Constituição, mesmo que venha a ser o seu afastamento pelo Congresso — hipótese que, hoje, está fora de cogitação —, será mais democrática do que qualquer intervenção militar. Essa é uma lição da nossa História.

Um comentário:

  1. Caro Azedo,

    Em nenhum momento o PT(seria melhor dizer esquerda,pois que essa idéia é mais ampla que o partido),quando fala em "golpistas",fala em golpe militar.Ou o que foi feito no Paraguai(poderia citar Honduras mas lá houve sim uma participação militar,embora acessória)
    poderia em alguma hipótese ser considerado "normalidade democrática" por um jornalista com a sua bagagem? Claro que não,né Azedo!
    O que preocupa é o que pretendem as oposições organizadas(não,não me limito,aqui,aos partidos.Todas as organizações que assim agem,incluindo,óbvio,a mídia),não os grupelhos exaltados na Paulista ou na internet.
    Quando diz que nenhum grupo político responsável quer a volta dos militares,concordo.Mas porque não interessa a esses grupos perder o controle da "passagem do poder".Já não confio tanto na inabalável crença democrática de muitos.
    Faltou dizer que entre a oficialidade,salvo possíveis exceções,não há desejo de atuar fora da constitucionalidade.

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