segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Vida e destino, Ida e Holocausto


Estou lendo Vida e Destino, obra magistral de Vas­sili Gros­s­man, escrita no final dos anos 50, no embalo da "denúncia do culto à personalidade" de Nikita Kruschev. Em 1960, o autor tentou publicar o livro em fascículos na revista “Znamya”, mas a KGB apre­en­deu o manus­crito. Depois, as autoridades lhe disseram que o livro provocaria mais prejuízos ao regime socialista que  “o Dou­tor Jivago”, de Boris Pas­ter­nak. 

“Nem daqui a 200 anos, o seu romance será publi­cado”, disse-lhe o grande ideó­logo do Polit­buro, Mikhail Sus­lov. Li o informe do Suslov sobre a invasão da Checoslováquia, um texto que circulou mimeografado entre os militantes do PCB na década de 1970. Com base nesse texto, a direção e os militantes do PCB, entre os quais me incluo, defenderam a intervenção soviética.

A sua tese básica é era de que a democratização do regime naquele país representava uma ameaça para todo o sistema socialista porque havia, ainda, relações de produção capitalistas na sua economia, ao contrário do que acontecia na União Soviética, onde tudo era do Estado, até o sorveteiro da esquina.

Nesse sentido, a ditadura do proletariado, isto é, do partido, era a forma de poder mais adequada para preservar o socialismo na Checoslováquia, onde a abertura era promovida pelo próprio PCCh, sob a liderança de Alexandre Dubcek, que foi deposto na intervenção soviética. 

Segundo Suslov, se havia um país que poderia abrir mão da ditadura do proletariado, no futuro, seria a URSS. Dependeria das condições internacionais e do desenvolvimento das forças produtivas, a sua evolução para um "Estado de todo o povo", rumo ao comunismo, como mais tarde proclamou Brejnev. Quando Gorbatchov tentou democratizar o regime, a União Soviética dissolveu-se sem um tiro, depois de uma tentativa de golpe militar da cúpula do PCUS.

Gros­s­man mor­reu dois anos depois da apreensão dos manuscritos. Julgou-se que a obra teria sido des­truída pelo KGB, mas um amigo de Gros­s­man e o cien­tista Andrei Sakha­rov con­se­gui­ram, em 1974, fazer che­gar uma cópia a França, onde pri­meiro foi edi­tada. Na Rús­sia, foi publi­cada, depois da Glasnost de Gor­ba­chev, em 1988, mesmo assim uma versão incompleta; no Brasil, lançado no ano passado, está em todas as livrarias. 

Banalização do mal

O livro é mais um soco na boca do estômago dos antigos militantes do PCB, como O homem que amava os cachorros, do Leonardo Padura. Romance épico, transcorre durante a Batalha de Stalingrado e descreve os horrores da guerra. O livro choca pela narrativa fora dos campos de batalha, em particular a perseguição aos judeus.

Vida e destino tem por cenários um campo de concentração nazista, uma cidade ocupadas pelo exército alemão e uma aldeia para a qual foram removidos os refugiados da guerra quando Moscou foi evacuada. Em todo lugar, em meio ao autoritarismo, ao burocratismo, o culto à personalidade e a fé cega no partido. E o antissemitismo!

Escrevo sobre isso porque amanhã, 27 de janeiro, é o dia em que o Exército Vermelho chegou a Auschwitz, na Polônia, e revelou os horrores do Holocausto. Por isso mesmo, a data é comemorada em todo o mundo até hoje, tanto quanto o levante do Gueto de Varsóvia. Até então, havia rumores de que os judeus estavam sendo exterminados, mas não se sabia onde e como, nem o que realmente se passava ali.

No complexo de Auschwitz II–Birkenau foram assassinados mais de três milhões de pessoas: 2,5 milhões de judeus foram gaseificados, 500 mil morreram de fome e doenças. Também foram deportados e executados 150 mil poloneses, 23 mil ciganos romenos, 15 mil prisioneiros de guerra soviéticos, cerca de 400 Testemunhas de Jeová.

O mundo deve o Exército Vermelho a preservação do local, intacto, até hoje. Estive lá há alguns anos, em viagem de férias pelo Leste europeu. É um horror, mas merece ser visto. É a prova de que a racionalidade e o humanismo não são a mesma coisa. https://www.youtube.com/watch?v=2MU5YPjziR4

É preciso reconhecer que a "banalização do mal", como sustentou Hanna Arendt sobre o Holocausto, é um fenômeno inerente ao totalitarismo de um modo geral e não apenas aos campos de concentração nazistas. Não foi à toa que o livro de  Grosmann esteve proibido por tanto tempo.

A censura

Somente em 2013, o Serviço de Segurança Federal transferiu para o Arquivo de Literatura e Arte do Estado o manuscrito completo do romance "Vida e Destino", que ficava em um arquivo de acesso restrito. Agora, pesquisadores poderão analisar os rascunhos e os capítulos inéditos da obra. A filha e a neta do escritor estiveram presentes na cerimônia de transferência.

Grossman foi um notável repórter na guerra. Correspondente no front do jornal militar soviético Krasnaia zvezda (Estrela vermelha), esteve em Stalingrado e presenciou a libertação dos campos de extermínio nazistas de Majdanek e Treblinka. Seus relatos sobre o que encontrou ali foram usados como testemunhos de acusação nos tribunais de Nuremberg, quando criminosos de guerra foram levados a julgamento. A mãe de Grossman, Yekaterina Saviélievna, a quem Vida e destino é dedicado, foi assassinada pelos alemães em Berdichev.

Escreveu o livro ao longo de dez anos, de 1950 até 1960, como continuação de um romance sobre a Batalha de Stalingrado de grande sucesso (Por uma causa justa), mas nunca chegou a vê-lo publicada. Deprimido com a apreensão do livro, escreveu ao primeiro secretário do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética, Nikita Kruschev:

"Os métodos com os quais querem deixar em sigilo tudo o que aconteceu com o meu livro não são métodos de combate à mentira ou à calúnia. Não é assim que se luta contra a mentira. Assim se luta contra a verdade. Não há nenhum sentido em minha liberdade física, quando o livro ao qual eu dediquei a minha vida encontra-se preso. Peço liberdade para o meu livro."

Os materiais foram mantidos na KGB, embora eles não contivessem a indicação de sigilo oficial, e uma cópia do romance sobreviveu aos cuidados de um amigo do escritor, o poeta Semion Lípkin. Em 1970, foi possível levar essa cópia para o exterior. 

Um filme a ser visto

A propósito, está em cartaz um grande e delicado filme que tem como pano de fundo o Holocausto: Ida, de Pawel Pawlikowski, representante da Polônia na disputa pelo Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2015. Assisti neste domingo e recomendo. 

A trama é um reencontro com o passado, mas o grande objeto da narrativa é a jornada de uma jovem noviça que inicia a vida adulta e é obrigada a conviver com erros e decepções de uma tia comunista, antes de fazer seus votos. A tia pecadora e cheia de culpas coloca em xeque sua vocação: como fazer o sacrifício dos votos se não conhece o pecado?
http://mais.uol.com.br/view/1xu2xa5tnz3h/trailer-legendado-do-filme-ida-04028C9B3160C8995326?types=A&

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