domingo, 19 de outubro de 2014

Entre o passado e o futuro

Nas Entrelinhas: Luiz Carlos Azedo
Correio Braziliense - 19/10/2014


Os discursos de Aécio e de Dilma evocam o debate entre Juscelino e Brizola antes do golpe de 1964

Winston Churchill (RU), Franklin Roosevelt (EUA) e Josef Stálin (URSS)

As raízes do debate protagonizado neste segundo turno pela presidente Dilma Rousseff, que pleiteia a reeleição, e o candidato de oposição, Aécio Neves (PSDB), parecem fincadas na década de 1960, às vésperas do golpe militar de 1964. Não é à toa que surgem tantas referências a personagens daquela época, como Carlos Lacerda e João Goulart, Leonel Brizola e Juscelino Kubitschek.

À época, o debate foi interditado pelo regime militar. Para usar uma expressão do filósofo alemão Jürgen Habermas, foi “congelado” por 20 anos, mas continua vivíssimo, 50 anos depois. Foi assim também como a história das nações europeias anterior à Segunda Guerra Mundial, que somente foi “descongelada” pela queda do Muro de Berlim e a dissolução da União Soviética. Ainda hoje as fronteiras traçadas pela Conferência de Yalta estão sendo redesenhadas.

Consagrado pela importância que atribuiu à comunicação no capitalismo contemporâneo ou “tardio”, Habermas comparou a Europa do fim da “Guerra Fria” a uma fotografia — como aquela de Roosevelt, Stálin e Churchill em fevereiro de 1945, na Criméia — que foi “descongelada” e virou um filme de longa metragem, como se a história anterior à guerra fosse retomada de onde foi interrompida. “Ninguém me convence de que o socialismo de estado seja do ponto de vista da evolução social, ‘mais avançado’ ou ‘mais progressista’ do que o capitalismo tardio. (...) são senão variantes de uma mesma formação societária… Temos tanto no Leste como no Oeste modernas sociedades de classe, diferenciadas em Estado e Economia”, disse Habermas (Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1989).

À la Tarantino
Há um gênero literário que consiste em reescrever determinado evento, cujo desfecho alternativo poderia ter mudado o curso da história. Os franceses chamam isso de événements: uma ligação nova entre o passado e o futuro, como aquela sacada de Quentin Tarantino quando quase mata Hitler, o ditador alemão, em pleno cinema, no filme Bastardos Inglórios.

Voltemos ao fio da meada. Caso o golpe militar de 1964 não ocorresse, teríamos eleições presidenciais em 3 de outubro de 1965, com pelo menos três possíveis candidatos: o ex-presidente Juscelino Kubitschek, cuja candidatura havia sido lançada pelo PSD; o governador carioca Carlos Lacerda, o líder da oposição, candidato da UDN; e João Goulart, o presidente da República que assumira o mandato com a renúncia de Jânio Quadros, líder do PTB.

É o que o líder comunista Luiz Carlos Prestes articulava a reeleição de Jango, que julgava melhor opção do que Leonel Brizola, cuja candidatura pelo PTB era legalmente contestada, porque era casado com a irmã do presidente da República, Neuza Goulart. Essas articulações foram reveladas por Prestes ao líder soviético Nikita Kruschev, na presença de outro dirigente do antigo PCB, Orestes Timbaúva.

Trabalhistas e comunistas consideravam Juscelino quase imbatível, mas não desejavam sua volta ao poder. Na Presidência, JK havia construído hidrelétricas, estradas; promovera a industrialização e a modernização da economia. Construíra Brasília, a nova capital federal. Mesmo assim, era considerado conservador e “entreguista” pela esquerda brasileira, que desejava um governo antiamericano e estatizante, que fizesse as reformas de base, principalmente a agrária — se preciso, “na lei ou na marra”.

Em plena “Guerra Fria”, o outro lado, porém, já era mais forte, por causa da inflação, da corrupção no governo e do isolamento político de Jango. Carlos Lacerda e outros líderes da UDN conspiravam com os militares para evitar que Goulart comandasse as eleições, como candidato à reeleição, ou mesmo apoiando Brizola. O “dispositivo militar” de Jango era uma ficção. Alguns chefes militares queriam tomar o poder desde o suicídio de Getúlio Vargas, em 1954. Com a radicalização política, deram o golpe com amplo apoio da classe média.

Juscelino chegou a se iludir com a manutenção do calendário eleitoral, mas foi cassado pelo marechal Castelo Branco, que assumira a Presidência e sustou o pleito. Em 1966, no exílio, ainda tentou organizar a “Frente Ampla” pela redemocratização do país, junto com Carlos Lacerda e João Goulart. O movimento foi proscrito pelos militares. Nenhum dos três políticos viveu o suficiente para o ver o país de volta à democracia. Uma parte da esquerda aderiu à luta armada, outra se uniu aos liberais no antigo MDB para lutar pela anistia, as diretas já e a Constituinte. O resto da história é conhecida.

Nessa eleição, curiosamente, os discursos de Aécio e Dilma evocam o debate entre Juscelino e Brizola antes do golpe. Felizmente a história não se repete — nem como farsa, nem como tragédia. Não há nenhum Carlos Lacerda nem generais golpistas. Mas há, novamente, uma escolha sobre o futuro. E desta vez a decisão será no voto!

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