domingo, 6 de julho de 2014

"Nós contra eles"

Nas Entrelinhas: Luiz Carlos Azedo
Correio Braziliense - 06/07/2014

O nacionalismo em campo é um sentimento bonito e saudável — até a hora que motiva um jogador a fazer uma covardia em campo, como aquela joelhada  do colombiano Zuñiga na coluna de Neymar. 

Ehrenburg(E) com Gustav Regler e Hemingway, Espanha, 1937
O escritor judeu-russo Ilya Ehrenburg Grigoryevich acompanhou a SegundaGuerra Mundial (1939-1945) como correspondente de guerra, com a experiência anterior de repórter na Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e na Guerra Civil Espanhola (1936-1939), da qual participou, com o colega norte-americano Ernest Hemingway. Amigo de Jorge Amado e Pablo Neruda, teve várias obras traduzidas no Brasil, entre elas A queda de Paris e Moscou não crê em lágrimas. Os três fizeram um pacto para não contar suas memórias. Ehrenburg, porém, foi o primeiro a quebrá-lo, escrevendo talvez a sua obra mais importante. O último foi Jorge Amado, com Navegação de cabotagem.

 Ehrenburg foi o primeiro escritor a denunciar os números do Holocausto, no Livro negro, com relatos de judeus sobreviventes da Polônia e da antiga União Soviética sobre os campos de concentração. Com o fim da guerra, porém, foi muito criticado por seus colegas russos, porque durante a ocupação tratou todos os alemães como “boches”, não distinguia um agente da Gestapo de adolescente mandado para a frente de batalha como bucha de canhão. Como se sabe, o exército de Hitler chegara às portas de Moscou e somente foi derrotado na sangrenta batalha de Stalingrado, que marcou o início da derrocada militar do líder nazista. Morreram na guerra 20 milhões de soviéticos.

 “Vamos matar. Se você não tiver matado pelo menos um alemão um dia, você teve desperdiçado aquele dia ... Não conte dias; não conta milhas. Conte apenas o número de alemães que você matou...”, chegara a dizer num artigo intitulado Morte. Mais tarde, para se defender, Ehrenburg lembrou um artigo de 1942, quanto Stalingrado ainda estava sob cerco alemão, no qual advogava a benevolência com os prisioneiros.: “O soldado alemão com arma na mão não é um homem para nós, mas um fascista. Odiamos ele. [...] Quando o soldado alemão dá a sua arma e se entrega, nós o faremos. Não tocá-lo com um dedo — ele viverá!” Em 2 de fevereiro de 1943, 91 mil homens esfomeados, doentes e exaustos foram feitos prisioneiros, entre eles 22 generais do 6º Exército, depois da rendição do marechal alemão Von Paulus.

Perseguições

Esta lógica do “nós contra eles” teve seus ecos por aqui, quando o Brasil entrou na Segunda Guerra Mundial, depois de um longo namoro do presidente Getúlio Vargas com o Eixo (Alemanha-Itália-Japão), nos primeiros anos do Estado Novo (1937-1945). Em 1942, quando navios brasileiros foram afundados por submarinos alemães no Oceano Atlântico, Vargas fez um acordo com o presidente dos Estados Unidos, Franklin Delano Roosevelt, e o Brasil entrou na guerra ao lado dos Aliados (Estados Unidos, Inglaterra, França e União Soviética, entre outros).

Alemães, italianos e japoneses e seus descendentes no Brasil passaram a ser imediatamente perseguidos. Clubes foram fechados ou obrigados a mudar de nome, caso do Palmeiras, antigo Palestra Itália, e do Yacth Club Santo Amaro, antigo Clube Alemão de Vela, em São Paulo, do nosso Robert Scheidt, 15 vezes campeão mundial e bicampeão olímpico. Até bares e restaurantes foram obrigados a mudar de nome, como o centenário Bar Luiz, no Rio de Janeiro, que se chamava Bar Adolph.

Os suspeitos de pertencerem ao Partido Nazista ou à Juventude Hitlerista eram mantidos sob vigilância ou confinados em campos de concentração. Houve pelo menos nove: Tomé-Açú, no Pará (alemães e japoneses); Chá de Estevão, em Pernambuco (empregados alemães da antiga Cia Paulista de Tecidos, hoje Casas Pernambucanas); Ilha das Flores, no Rio de Janeiro (onde prisioneiros de guerra foram misturados com presos comuns); Pouso Alegre, em Minas Gerais (marinheiros do navio Anneleise Essberger); Ilha Anchieta (colonos japoneses); Guaratinguetá e Pindamonhangaba (fazendas onde foram confinados colonos alemães e marinheiros do navio Windhuk); Penitenciária Agrícola da Trindade, em Florianópolis; e Presídio Político Oscar Schneider, em Joinville (onde um hospital foi transformado em colônia penal para suspeitos de atividades nazistas do Sul do país), em Santa Catarina.

Os alemães perderam a Copa do Mundo de 1938 na França, no auge do regime nazista: não passaram da primeira fase. Foram, porém, campeões em 1954 (Suiça), 1974 (Alemanha) e 1990 (Itália) — com o país ainda dividido em consequência da guerra. Depois da reunificação, com a queda do Muro de Berlim, disputaram duas finais e um terceiro lugar. Agora, vieram com tudo para vencer a Copa do Mundo no Brasil, mas, nem por isso, devemos tratá-los como “boches”, na semifinal contra o Brasil de terça-feira. O evento é uma celebração da paz, na qual o patriotismo de 11 craques em campo e milhões de torcedores não pode ser inimigo da confraternização multinacional e multiétnica do futebol. O nacionalismo em campo é um sentimento bonito e saudável — até a hora que motiva um jogador a fazer uma covardia em campo, como aquela joelhada  do colombiano Zuñiga na coluna de Neymar.

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