segunda-feira, 7 de abril de 2014

O golpe visto de hoje

Nas Entrelinhas: Luiz Carlos Azedo
Correio Braziliense - 07/04/2014



 Não existe democracia sem o Congresso funcionando livremente. O papel dele na realização de bons governos, porém, depende da forma como se relaciona com o Executivo.


O que nos liga ainda hoje ao golpe de 1964, no qual lideranças militares e civis destituíram um presidente constitucionalmente eleito, João Goulart, e implantaram uma ditadura que durou mais de 20 anos? Sem dúvida, é a defesa dos valores democráticos. A defesa da democracia contra a “ameaça comunista” foi um mito criado para justificar o regime militar, pois não havia a menor chance de os comunistas derrotarem Juscelino Kubitschek nas eleições de 1965. Também é um mito pós-democratização a ideia de que as forças de esquerda que defendiam as reformas de base “na marra” e, depois, promoveram a “resistência armada” ao regime militar apoiavam a democracia, pois queriam mudar as regras do jogo para conquistar o poder.

Visto de tão longe, isso parece não ter importância. Hoje, os ex-integrantes das organizações que participaram da luta armada já não pregam as mesmas ideias de outrora, haja visto a presidente Dilma Rousseff, ela própria uma ex-guerrilheira, que recentemente defendeu a preservação da Lei da Anistia tal como se encontra. Os militares linhas-duras, entre os quais muitos ex-torturadores, também não têm influência na caserna, onde predominam a hierarquia e a disciplina imposta pela Constituição de 1988 e pelos regulamentos militares. Tanto que o Ministério da Defesa resolveu fazer sindicâncias nas instalações militares que foram utilizadas como centros de tortura.

As Forças Armadas deram um passo para reconhecer seus erros e os ex-guerrilheiros fazem autocrítica da luta armada. Ambos dificilmente fariam as mesmas coisas para chegar ou se manter no poder. Diante da consolidação do regime democrático e do fato de que já não existe a Guerra Fria, isso seria praticamente impensável. Quando olhamos ao redor, para os nossos vizinhos da Argentina, da Bolívia e da Venezuela, porém, vemos que o caldo de cultura das velhas tentações golpistas latino-americanas está vivíssimo. De parte da velha direita, já que a esquerda chegou ao poder; e da nova esquerda, quando corre o risco de perdê-lo em razão do fracasso de sua estratégia “anti-imperialista” de desenvolvimento.

A velha direita ficou órfã. Os Estados Unidos de Barack Obama optaram por outras formas de intervenção política, depois do fracasso da estratégia de seus antecessores, como ocorreu na Venezuela nos primeiros anos do governo bolivariano de Chávez — embora a espionagem eletrônica esteja aí para provar que os serviços secretos monitoram quase tudo. No Brasil, mesmo que a democracia não seja um valor universal para todos os atores políticos, o fato de termos um processo eleitoral de massas, com apuração instantânea e limpa, faz com que a nossa ordem constitucional, a cada eleição, se torne mais robusta. As agressões ao nosso Estado de direito democrático são de outra ordem, estão mais ligadas aos velhos costumes políticos.

Crise dos partidos

Vem daí a desmoralização dos políticos, dos partidos e do próprio Congresso, no bojo de uma crise do sistema representativo, cujas origens são estruturais. Decorre da formação dos grandes meios de comunicação de massa e do surgimento de novos sujeitos sociais, como os movimentos de gênero e de minorias. Essa crise foi aprofundada pela internet e as redes sociais. É cada vez menor o papel dos partidos na formação da opinião pública, ou como porta-vozes dos interesses da sociedade na vida cotidiana, embora mantenham o monopólio do poder político. Trata-se de um fenômeno global.

Há 50 anos, o xis da questão na desestabilização política do governo Jango foi a péssima relação entre o Executivo e o Congresso, a partir do plebiscito que restabeleceu o presidencialismo, e de sua frustrada tentativa de decretar o estado de sítio, rejeitado pelo Congresso. Jango pretendia fazer reformas por decreto e convocar uma Constituinte. Não foi à toa que o próprio parlamento legitimou a ação dos militares golpistas, quando Jango se deslocou de Brasília para o Rio Grande do Sul, com o propósito de restabelecer a rede de apoio que garantira a sua posse em 1962. Como se sabe, a história se repete como farsa ou como tragédia.

No Brasil imediatamente pós-regime militar, o impeachment do então presidente Fernando Collor de Mello, em meio a escândalos de corrupção e um amplo movimento de massas, resultou na renúncia e na posse do vice, Itamar Franco, com o país mergulhado na hiperinflação. Não houve interferência dos militares, foi um ajuste de contas das forças políticas que perderam a eleição para a Presidência. Collor fora um candidato outsider, considerado aventureiro pelos demais caciques políticos. Muito mais do que os casos de corrupção, o que determinou sua queda foi ter confrontado o Congresso. Desde então, nenhum presidente da República descuidou de manter uma ampla base parlamentar, mesmo em sacrifício do programa de governo. Graças a isso, Fernando Henrique Cardoso aprovou o direito à uma reeleição, uma das pretensões de Jango que o levaram ao exílio.

Não existe democracia sem o Congresso funcionando livremente. O papel dele na realização de bons governos, porém, depende da forma como se relaciona com o Executivo. Sempre que o parlamento é afrontado ou desmoralizado, quem perde é a democracia. Em geral, tal fenômeno decorre da conduta das forças que estão no poder, que ditam o padrão de atuação de sua base parlamentar — para o bem ou para o mal. Basta ver o que está acontecendo agora, no caso da CPI da Petrobras.

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